in loco
Dia 7: Todo o mal estar do mundo
por Eduardo Valente

Tentar cobrir o Festival de Cannes é um exercício em frustração, já que não conseguimos ver nem um terço dos filmes que gostaríamos, uma vez que são de 10 a 12 filmes novos por dia (todos a princípio de interesse, nem que seja no caso dos mais fracos para entender porque foram selecionados para Cannes e o que nos dizem do estado do que se considera o melhor ou mais importante cinema que se faz no mundo hoje) – isso para não falarmos dos Cannes Classics, sessão que tem sempre uma programação deliciosa, mas que eu particularmente não consigo nem chegar perto, porque acho as sensações de tentar tirar a temperatura do cinema contemporâneo e (re)experimentar ou descobrir alguns dos grandes filmes do passado do cinema coisas quase incompatíveis, pelo menos no ritmo daqui. Além disso, pelo horário francamente torturante do começo dos trabalhos (levantamos todo dia entre 7h e 7h30, tendo filmes a ver a pelo menos até meia-noite), o cansaço que toma conta das pessoas me parece nos colocar em condições físico-psicológicas que talvez sejam as menos recomendadas para realmente apreciar cada filme no que eles têm de único, especial, diferente. Com isso, acabamos dormindo em filmes que queríamos muito ver, ou precisando abrir mão de alguns mais cedo ou mais tarde nos dias em que o cansaço beira a estafa. É um sentimento diário de não estar dando conta do que se veio fazer aqui, em suma, que só seria realmente apaziguado se pudéssemos todos passar dez dias depois do Festival em Paris – onde são reprisadas as seleções da Un Certain Regard, Quinzena dos Realizadores e Semana da Crítica ao longo da semana seguinte ao festival. Talvez assim, durando 20 dias, pudéssemos conseguir entender de fato o que foi o Festival de Cannes de cada ano.

Enquanto isso não é possível, seguimos aqui tentando – no meu caso pelo menos principalmente por saber exatamente o quanto o leitor se interessa muito pelo pouco que conseguimos passar para ele. No entanto, como vão se acumulando os filmes, e o tempo de escrever diminuindo, é quase natural esta opção que tomo, muitas vezes, de associar uma série de filmes a partir de questões que nos surgem. Não é de todo o mais adequado, pois cada filme pediria o seu espaço isolado, mas também acho que nestas condições em que vemos o filme, o que ficam mesmo são primeiras impressões, mais do que tudo. Então, acho melhor assumir esta impossibilidade de efetivamente analisar cada obra em si, e ir mostrando ao leitor tudo aquilo que o conjunto dos filmes vem nos fazendo pensar ao, inevitavelmente, somarmos uns filmes aos outros.

* * *

Tokyo Sonata, de Kyoshi Kurosawa (Japão, 2008) – Un Certain Regard
De la guerre, de Bertrand Bonello (França, 2008) – Quinzena
Le silence de Lorna, de Jean-Pierre e Luc Dardenne  (Bélgica/França, 2008) – Competição
Afterschool, de Antonio Campos (EUA, 2008) – Un Certain Regard
Los Bastardos, de Amat Escalante (México/França, 2008) – Un Certain Regard

Se é fato que este festival que tem se caracterizado por um predominante tom grave na maior parte dos filmes, os últimos dias foram especialmente marcados por alguns filmes que se dedicam, antes de tudo, a traçar um panorama nada animador do estado do mundo hoje, propondo a exposição de uma malaise que parece tomar proporções francamente devastadoras quando vemos todos estes na seqüência. Acima, optei por listar os cinco filmes de que tratarei agora, de maneira um tanto episódica, na ordem da minha preferência entre eles, do que eu mais gosto (e gosto bastante) ao que eu menos gosto (e detesto bastante, também).

De todos os filmes citados, é de Bonello o que mais assume de saída esta malaise citada, porque o cineasta se coloca em cena como representante da mesma, de forma radical: não só o personagem principal interpretado por Mathieu Amalric se chama Bertrand, como em determinado momento do filme ele visita o túmulo que seria do seu pai, e está lá na lápide o sobrenome Bonello. O Bertrand do filme é um personagem que perdeu a conexão do mundo, que não sabe mais o que fazer porque sente que simplesmente não tem nenhuma ligação com a realidade à sua volta. Nas suas palavras, ele “está lá, mas não está lá”. A partir de uma experiência radical e do encontro com um personagem misterioso, Bertrand se retira para uma comunidade alternativa, onde vai sendo despido de suas preocupações cotidianas (entre elas, a namorada, a família e o trabalho no seu próximo filme). É quando se retira na comunidade que o filme de Bonello bate numa parede dificílima de transpor: como filmar uma passagem deste malaise para algum tipo de conexão com o humano? Bonello, que até então fazia um filme de grande força, patina justamente na tentativa de filmar esta “transformação” e aquela comunidade. Há ali no filme muitas boas idéias, mas o espectador vai lentamente se distanciando um pouco do sentimento dele na medida em que o filme mergulha uma certa auto-indulgência frente a sua própria proposta.

O filme nos permite fazer uma curiosa ponte com o novo trabalho de Kyoshi Kurosawa, onde logo no começo vemos o personagem principal também perder seu contato com a sua realidade, e ir lentamente se distanciando de todos. É um começo que lembra as situações de A Agenda e O Adversário, só que o filme vai revelando aos poucos que não está tão longe assim do cinema de horror-suspense de Kurosawa como se afirmou, só que aqui se trata do horror do cotidiano, sem nada de sobrenatural. Mas, a grande diferença do filme de Kurosawa para todos os outros que tratam desta dificuldade de se estar no mundo hoje, de se constituir família, viver e ser feliz simplesmente, é que ao horror ele vai adicionar o humor, o burlesco, o fantástico, tudo isso numa mistura de tal forma engajante e inesperada que nunca sabemos o que esperar que possa acontecer em cada plano – muito menos ainda o que virá no plano seguinte.

Há nesta forma de se lidar com a idéia mesmo da narrativa de cinema um maravilhamento frente ao mundo que por si mesmo anula toda e qualquer possibilidade do mundo parecer algo sem saída, algo apenas causador do mal – embora ele esteja por todos os lados. Se no final os personagens de Kurosawa (os únicos nesta “série”) encontram uma certa idéia de ultrapassagem do horror, isso se dá certamente menos por um desejo naif de propor uma alegria fugaz ao espectador com a qual ir para casa, mas principalmente como encarnação disso que o seu filme já vai afirmando cena a cena: se o mundo pode ser tudo, a cada momento, é porque talvez inevitavelmente, em algum destes momentos ele vai ser algo de bom, algo que uma as pessoas e não apenas as separe.

Trata-se do exato oposto do mundo segundo Amat Escalante: em Los Bastardos tudo que o homem pode gerar ao outro é a dor, o mal, o horror. Do mundo e das relações humanas, nada a esperar, nada a documentar que não seja o sofrimento. E a posição do autor frente a este mundo e ao espectador é a de nos expor da maneira mais degradante possível ao caminho decadente que seus personagens percorrerão. Escalante aqui une parte do que já trazia em seu primeiro filme (Sangre) do cinema de seu mentor e colaborador Carlos Reygadas, e soma um pouco com o que de pior nos dão o cinema de um Michael Haneke, de um Bruno Dumont, de um Ulrich Seidl. É a estética do refém levada à enésima potência, em que sempre sabemos o que acontecerá em cada plano (todos sempre belos, bem enquadrados, de longa duração e elegantes movimentos – afinal o mundo pode ser feio, mas o filme nunca): o pior que for possível. Para ilustrar tudo isso, Escalante faz questão de realizar um plano que se coloca o desafio de entrar na galeria dos mais dantescos da história do cinema (embora, para isso, use efeitos visuais inegavelmente fantásticos), e usa da lógica mais óbvia possível na sua composição: o que pode ser mais estúpido do que enquadrar seus personagens em situação humilhante do que colocar na trilha sonora fora de quadro um programa de videocassetadas? Pois é este o mundo segundo Escalante.

Comparada a ela, certamente a visão de Antonio Campos em seu Afterschool é de enorme complexidade, principalmente por assumir alguma dúvida frente e em seus personagens. No entanto, há um problema essencial que faz com que seus momentos mais interessantes acabem sendo um tanto quanto diminuídos quando vistos no todo: o desejo de se colocar a priori como diagnosticador de um mal estar onipresente, que é sentido principalmente no uso constante de ruídos na trilha de áudio (como os das lâmpadas fluorescentes nas cenas de interior ou de aviões passando no exterior), mas também numa mise-en-scène “elegante” cujos constantes movimentos e desenquadros/reenquadramentos seguem uma lógica da beleza através do desconforto. Isso, somado a construção de algumas presenças bastante desinteressantes (como a do diretor da escola, sempre com sua gravatinha e hipocrisia à toda prova) e ao desejo de falar algo sobre o olhar do jovem para o mundo a partir de alguns dados hiperdimensionados (como o uso das imagens de vídeo como principais mediadoras com o mundo) fazem a confusão dos personagens de Campos soarem um tanto “controladas” pelo olhar de um demiurgo que os controla pela ponta de seus fios. Se está longe de ser um filme deplorável, como era o 2h37 que pudemos ver no Un Certain Regard de dois anos atrás, certamente é um filme que tateia muito sua forma e real intenção – algo que fica especialmente claro, óbvio, quando temos Elefante como o horizonte inescapável da estupefação frente ao mal estar do mundo tornada cinema através dos dramas escolares.

Finalmente, claro que temos que passar pelo cinema dos irmãos Dardenne, talvez aquele que nos últimos anos tenha colocado de maneira mais concreta e constante o problema da dureza do mundo moderno, principalmente a partir de uma perspectiva sócio-econômica, onde o humano surge como único horizonte possível de alguma esperança. Sabemos que estamos no mesmo território, quando o primeiro plano de Le silence de Lorna já enfoca dinheiro sendo contado: de novo (em proximidade principalmente com A Criança), teremos a questão de uma transformação, partindo do domínio do econômico como fim maior, chegando à relação com o outro – aquele que está o tempo todo ali do lado. Só que se o filme parece patinar é menos por uma suposta repetição de fórmula dos realizadores e mais pelo fato de que algumas de suas opções aqui parecem deixar claro uma manipulação sentimental cuja facilidade ainda não havia sido vista nos seus trabalhos anteriores, melhores ou piores.

Talvez Le silence de Lorna seja o mais “roteirizado” dos filmes dos Dardenne, e mais do que um problema em si mesmo, esta questão se revela mal resolvida justamente pelas opções tomadas neste roteiro. Tudo começa na principal virada do roteiro, ali pela metade do filme, naquele que no fundo é um momento que exime a personagem principal de tomar qualquer decisão complicada, o que sempre esteve presente nos outros filmes, fazendo com que nossa relação com os protagonistas de Dardenne se dessem de igual para igual. Pois naquele momento os irmãos optam por começar uma canonização de tal ordem com sua personagem que não nos resta mais do que acompanhar de uma distância confortável seu sucessivo enlouquecimento, assim como o aumento de uma idéia de “forças do mal” que em muito ultrapassam as simples determinações de um mundo onde tomar passos em direções desejadas se mostra sempre algo complicado. Há em Lorna esta sensação segura para o espectador de encontrar ali o mal do mundo em personagens e suas decisões, e nisso o filme patina rumo a um esquematismo onde sobra pouco do mal estar para o espectador em si.

Maio de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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