in loco Dia
6: Sobre meninos e homens (Bellochio, Guiraudie, Von Trier) por
Eduardo Valente Vincere,
de Marco Bellochio (Itália, 2009) – Competição Le
roi de l’evasion, de Alain Guiraudie (França, 2009) – Quinzena dos Realizadores Antichrist,
de Lars Von Trier (Dinamarca, 2009) – Competição
Há
poucas semanas, quando Ronaldo (sim, aquele, o Fenômeno) marcou dois golaços contra
o Santos na final do Campeonato Paulista, vários comentaristas de futebol apelaram
para uma expressão antiga, mas que há algum tempo eu não ouvia ser usada, especialmente
em português: eles diziam que Ronaldo jogando no Paulistão era um homem no meio
de meninos. Pois não se pode negar que foi um pouco esta sensação que eu tive
ao ver hoje o filme de Marco Bellochio, Vincere, logo depois de ter visto
os novos filmes de Guiraudie e Von Trier: Bellochio também se trata aqui de um
homem em meio a meninos (termo que, como veremos mais adiante, está longe de ser
apenas negativo para mim). Partindo
da reação mais direta possível, basta dizer o seguinte: os primeiros 40 minutos
de Vincere são, de longe, o que de mais impressionante se pôde ver em Cannes
até agora em termos de cinema. É bonito de se ver como um cineasta como Bellochio
consegue usar sua experiência e sabedoria para dosar um domínio absoluto das ferramentas
do cinema (enquadramentos, iluminação, movimentação dos atores, cortes, uso da
trilha sonora) com uma energia que parece vir daquela mesma fonte de eterna juventude
de que bebem, entre outros, Manoel de Oliveira e Clint Eastwood. Nestes primeiros
40 minutos, a potência que emana na tela enquanto ele constrói o caso de amor
entre um jovem Benito Mussolini e Ida Dalser, mulher que depois ele irá abandonar
à sua própria sorte e perseguir ao longo da vida, de longe (para que ela não coloque
abaixo o seu casamento), é nada menos do que emocionante. Bellochio, como bem
sabemos, não tem nenhum medo de ir além de qualquer naturalismo, e aqui usa muito
bem o tom operístico para construir sua enorme tragédia de uma mulher que também
é a de todo um país. Contando
com um trabalho de atores de Giovanna Mezzogiorno e Filippo Timi que nos capturam
absolutamente com seus olhos, Bellochio faz um cinema que expira tesão (não apenas
sexual, mas político – tanto de Mussolini quanto do próprio Bellochio), mostrando
que, depois de Bom Dia Noite (onde retratava as Brigadas Vermelhas e o
sequestro de Aldo Moro), nenhum desafio para ele é pequeno no que concerne a encenar
as grandes figuras/momentos da história italiana. Seu Mussolini é montado em camadas,
começando como um jovem sedutor, apaixonado e irresistível que, não apenas conquista
Ida, como logo depois enfeitiça um país. Na medida em que o filme avança, e Mussolini
se distancia de Ida, Timi será substituído pela aparição do verdadeiro Mussolini,
sempre em imagens de época – afinal, é quando ele se torna figura pública e ícone,
mas também quando sai do alcance da personagem principal. Bellochio usa com uma
inteligência extrema as cenas de arquivo, tornando inclusive o cinema um dos personagens
do seu filme (há várias seqüências dentro de salas de projeção, sendo que ainda
há uma, de indescritível beleza, que se passa dentro de uma igreja usada como
ambulatório na I Guerra, com uma Paixão de Cristo sendo projetada numa tela esticada
no teto). É verdade que, na segunda metade, ao acompanhar o ritmo do trajeto trágico
da vida de Ida Dalser, o filme se torna um melodrama um pouco mais convencional,
mas nunca se torna menos potente politicamente, com a recusa de Ida de capitular
reafirmada até, literalmente, o fim. Não
capitular também é a política de Alain Guiraudie, cujo Le roi de l’evasion
funciona numa linha reta narrativa que mergulha mais e mais na insanidade, acompanhando
o trajeto de um personagem cuja vida, rotineira, toma uma virada radical que leva
junto todos à sua volta. Quando falamos lá em cima que Guiraudie era um menino,
e que este termo não tem necessariamente um mau sentido, com certeza ele mesmo
ficaria feliz porque admite que o filme é um pouco resultado de sua “crise dos
quarenta”. Mas, mais do que tematicamente a vida do seu protagonista lidar com
essa questão, é a própria forma do filme que nos faz pensar no que de melhor a
infância traz: uma mistura de irresponsabilidade total (daquela mesmo que faz
falar e fazer tudo que os adultos já não mais podem) com um desejo de novidade
constante. De fato, Le roi de l’evasion é destes filmes, cada vez mais
raros, em que sentimos que não só a cada sequência como a cada plano, tudo pode
acontecer (e muitas vezes acontece, porque Guiraudie adora construir elipses insuspeitas
e efeitos de choque e re-compreensão da cena com um corte). Assim
como no filme de Bellochio, Le roi de l’evasion é um filme movido pelas
pulsões corporais mais brutas dos seus personagens, no que começa como uma comédia
e vai progressivamente se tornando um “filme de fuga e perseguição” (que muda
de perseguidos e perseguidores algumas vezes, aliás), incorporando elementos da
idéia básica de um Frankenstein, onde o elemento estranho passa a ser perseguido
por toda a cidade. Só que, sendo Guiraudie ao mesmo tempo um brincalhão e nada
bobo, logo essa distinção cairá porque a cidade vai revelando cada vez mais ser
tão “estranha” quanto o elemento em fuga, e o filme caminha então para uma conclusão
que abraça de vez todo tipo de desvio como a verdadeira norma – o que não é pouca
coisa para um filme que tem como “herói” um homossexual obeso de quarenta e três
anos que se vê de subitamente atraído por uma menina de dezesseis. Assim como
Vincere, Le roi de l’evasion é, para além de um prazer extremo para
olhos e ouvidos (a foto em scope é brilhante, explorando a paisagem natural da
pequena cidade do interior com grande inteligência), um senhor filme político
– ainda que sua política tenha mais apreço pela anarquia e pelo hedonismo. Hedonismo
é palavra que certamente não passa pelo vocabulário de Lars Von Trier, cujo Antichrist
de agora vem se juntar ao seu último Grande Chefe como afirmação de um
cineasta que, de polêmico por construir uma obra problemática mas de grande potência,
vai virando de forma bem rápida e radical um pastiche de si mesmo. Para o Von
Trier deste filme muito mais adequado do que “menino” seria mesmo o termo “moleque”
– mas aí sim, só com os maus sentidos. O filme tem um tom auto-importante em cada
um dos seus diálogos e planos que é inconsistente com uma construção narrativa,
simbólica e imagética cujo mau gosto e obviedade são inesperados mesmo
vindo do fotógrafo que já nos deu este ano Slumdog Millionaire. Desde um
prólogo (e, sim, o filme é destes que anuncia com cartelas um prólogo, quatro
atos e um epílogo) que parece uma paródia publicitária em câmera hiperlenta (e
onde a pulsão sexual leva à morte de uma criança) até um desenvolvimento na floresta
que pretende ao cinema de horror, mas não consegue criar qualquer noção de clima
ou de presença com suas imagens (que se tornam absolutamente inofensivas por isso
mesmo – a não ser, claro, para os muito pudicos ou inocentes, que não devem ter
visto nada na vida, como a projeção hoje mesmo do muito mais audacioso e chocante
Les yeux sans visages, de 1961, nos lembra bem). Se é verdade que a misoginia
do filme chega a ser impressionante pela sua frontalidade (e aparente inconsciência,
se acreditarmos no discurso do diretor), por outro lado não vale a pena cair nos
dois ou três golpes de choque fáceis do diretor, como muitos detratores parecem
ter feito, porque o que este filme pede mesmo é para ser ignorado, pela desimportância
do seu trabalho no cinema. E, afinal, como as crianças nos ensinam, muitas vezes
quando tudo o que elas querem é chamar a atenção, o mais sensato em várias destas
situações é as deixar falando sozinhas. Maio
de 2009
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