in loco - diários de cannes
Dia 1: O velho e novo
por Eduardo Valente
Midnight in Paris,
de Woody Allen (EUA/Espanha/França, 2011) – Filme de abertura
Sleeping Beauty, de Julia Leigh (Austrália,
2011) – Competição
Difícil pensar que dois filmes como Midnight
in Paris e Sleeping Beauty sejam postos lado a lado
em qualquer outro texto que não um sobre o ato de vê-los na sequência
no mesmo dia, aqui na abertura dos trabalhos em Cannes. Mas a verdade
é que, ainda que sejam filmes em quase tudo distintos, dos tons
(de cores na imagem ou de humor na tela) aos personagens, passando
pela maneira de olhar/filmar o espaço (despreocupada e casual
num, controlada ao extremo no outro), eles se parecem bastante
pelo desejo de utilizar-se da saga bastante particular dos seus
personagens para refletir não só sobre um estado do mundo, mas
principalmente das (im)possibilidades de transcendência e seus
efeitos sobre seus protagonistas – e, a partir deles, sobre o
espectador.
O
filme de Allen abre com uma sequência que certamente fará a alegria
dos críticos que querem ver esse seu impulso de ir filmar em lugares
distintos do mundo com os olhos cínicos que enxergam no gesto
tão somente um viés exotizante e turístico. Afinal, são três minutos
que cobrem todos os principais pontos de atração da capital francesa,
fotografados de maneira a não poderem parecer mais belos e poéticos.
No entanto, para confirmar seu estereótipo, cabe aos críticos
acima citados deixar a sala de cinema assim que os três minutos
acabam, pois assim como já acontecia no bastante inteligente (e
profundamente triste) Vicky Cristina Barcelona, Allen logo
deixa claro que esse olhar está sendo de fato jogado por um “turista”,
encarnado pelo personagem de Owen Wilson, completamente encantado
com a cidade que o cerca, e com todos os mitos artísticos que
cercam Paris. Logo, porém sua noiva questionará
cada uma das suas projeções, deixando claro que aquilo que ele
vê não é Paris de fato, mas sim uma fantasia que só existe
nos seus olhos (logo, nos da câmera).
E é a fantasia que logo vai dominar todo
Midnight in Paris, quando Gil (Wilson) descobre uma espécie
de portal para o passado, e começa a passar suas noites na Paris
dos anos 20, na companhia de figuras como Scott Fitzgerald, Gertrude
Stein, Pablo Picasso, Ernest Hemingway, Salvador Dalí e Luis Buñuel,
entre outros. No entanto, para cada noite feliz existe um amanhecer,
onde Gil se vê cada vez mais dominado pela sombra de um casamento
vindouro, claro e absolutamente errado para ele. A Paris dos anos
20, aos poucos, vai se tornando uma espécie de anti-depressivo
onde Gil vai se refugiar (tema, aliás, que surge no filme
com tintas agridoces quando Gil oferece um Prozac para Zelda Fitzgerald),
tanto mais quando se apaixona por Adriana (Marion Cotillard),
musa de Picasso, Modigliano e Bracque.
Na
medida em que a fantasia de Gil vai tomando o filme, Midnight
in Paris lembra cada vez mais A Rosa Púrpura do Cairo
– inclusive, naquele filme o ator vivido por Jeff Daniels chamava-se
Gil. Mesmo que toda a parte do filme que se passa nessas noitadas
fantásticas seja deliciosamente leve e cheia de citações e brincadeiras
(onde cada personagem célebre parece encarnar uma caricatura de
suas imagens – algo que faz todo sentido, como projeções de Gil),
no entanto, assim como no filme de 1985, pouco a pouco o prazer
se torna mais amargo, pois não esconde o duro preço que se cobra
do protagonista: encontrar essa felicidade apenas no escape. Ainda
que no final Allen opte por apontar agora para uma saída muito
mais leve do que então (e que, não por acaso, soa bastante
arbitrária e pouco crível), o drama principal do filme parece
mesmo terminar sendo aquele vivenciado plenamente pela personagem
de Cotillard, na ótima sacada do sonho dentro do sonho, com sua
opção de, como a Cecilia de Rosa Púrpura, afundar-se na
ilusão e no desencanto com o seu mundo.
Fugir
da realidade também parece ser o mote principal de Sleeping
Beauty, cujo título já faz uma citação a um conto de fadas
– que esta citação tenha muito de ironia não chega a ser surpresa
nesse festival que já nos deu tantos exemplos de filmes que querem
negar seus títulos “positivos” (pensemos apenas no My Joy
do ano passado). Aqui, a protagonista já surge no primeiro plano
tendo um aparelho médico enfiado goela abaixo, sofrendo espasmos
de vômito em plano-sequência. Daí
para a frente, é só ladeira abaixo, numa via-crúcis que inclui
empregos insuportáveis como garçonete ou copiadora, relações
frias e automatizadas com a família, os amigos e os proprietários
do lugar onde mora, e que vai desaguar num trabalho como uma espécie
de empregada/garçonete erotizada, em jantares para senhores velhos
de terno, com desejos obscuros e necessidades de vivenciar seus
afetos através da dominação. Finalmente, ela termina como uma
“bela adormecida”, mulheres dopadas e usadas para dar prazer a
estes senhores enquanto estão inconscientes.
O
problema principal de Sleeping Beauty passa longe de ser
o seu olhar negro para o mundo e as relações humanas, mas sim
a maneira desafetada – e, por conseqüência, incapaz de nos afetar,
mesmo que pelo choque – com que olha para tudo. A forma como sua
câmera esquadrinha o mundo (em enquadramentos sempre limpídos,
seguidos de movimentos de câmera elegantes, precisos) é, de fato,
o elemento que mais parece explorar e sugar sua personagem principal,
que ao final parece acima de tudo buscar sua libertação do filme
que protagoniza. Basta lembrarmos do já citado My Joy para
melhor entender a questão: se naquele filme a Rússia surgia inapelavelmente
como um inferno de violência e arbitrariedade, havia na forma
do filme mostrá-la, seja em suas inesperadas idas e vindas no
tempo/espaço, seja na maneira de nos pegar de surpresa com os
atos de completos estranhos, uma capacidade de nos confundir e
nos questionar o tempo todo, que resultava em inevitáveis efeitos
de reação à tela. Já Sleeping Beauty, com sua frieza que
parece filmada por uma máquina (ou, como exige uma personagem
das fantasias de seus patrões, que sejam “sem penetração”), apenas
nos afirma e reafirma a mesma coisa, sequência após sequência,
sufocando tudo com sua extrema beleza gráfica, arrancando a vida
da tela – e, logo, de nós como espectadores.
Mas onde estariam, então, as semelhanças entre
os filmes, citadas lá no começo, se suas descrições só parecem
distantes e diversas? Na verdade, tanto em um como no outro, em
seus distintos tons, a realidade parece sufocar os seus protagonistas
e empurrá-los rumo a um mergulho radical nas fantasias (sejam
elas positivas ou depravadas). Ainda que terminem suas trajetórias
de formas bem distintas, não se pode negar que, especialmente
no que tange o olhar para a morte que perpassa os dois filmes
(através dos velhos em Sleeping Beauty
e da discussão sobre posteridade e a permanência através dos personagens
dos anos 20 em Midnight in Paris – preocupação esta que
resvala em Gil), há um certo desespero frente ao entendimento
de que o fim tudo apaga, e que o que importa e resta viver é o
pouco que está à nossa volta mesmo. Só que o curioso é que, frente
a esta constatação, o olhar do septuagenário Allen parece se aproximar
do de uma criança, que brinca com sua capacidade de, através do
cinema, reencarnar suas próprias fantasias (acerca de Paris, dos
artistas dos anos 20, etc), enquanto a jovem Leigh, de recém-completados
40 anos, parece filmar o mundo já com o pé na cova.
Maio de 2011
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