in loco - diários de cannes
Dia 10: A
imagem é tudo
por Eduardo Valente
Ichimei
(Hara-Kiri: Death of a Samurai), de Takashi Miike (Japão,
2011) – Competição
Takashi Miike dirigiu nada menos que 80 filmes
desde sua estréia no começo dos anos 90, o que pode nos indicar
duas coisas: antes de tudo, sua paixão pelo fazer cinematográfico,
e que ele deve trabalhar de maneira incrivelmente rápida. É curioso
pensar de que maneira cada uma dessas características pode ajudar
a iluminar este Ichimei, um filme que se desenvolve na
tela com impressionantes graça e peso ao mesmo tempo.
Da
paixão pelo cinema, o que levou Miike a já ter feito filmes em
quase todos os gêneros imagináveis, vem aqui o desejo de se aventurar
pelo 3D, coisa que Miike faz aqui com uma inteligência e compreensão
das potências dessa nova tecnologia que ninguém – nem mesmo James
Cameron – havia demonstrado ainda. A primeira coisa a notar sobre
isso é a maneira como o filme de Miike faz uso dessa moderna imagem
em terceira dimensão com dois objetivos. O primeiro é nos instalar
nos espaços e na percepção diferente destes que esta tecnologia
permite. Só que Miike entendeu o que era óbvio, mas a grande maioria
dos exemplares hollywoodianos parecia não se dar conta até agora:
para que este efeito se realize de fato, é preciso dar tempo aos
planos, e mover a câmera com elegância. Cortes rápidos e movimentos
bruscos não permitem que o 3D se instaure como uma forma do espectador
quase cohabitar as cenas com os personagens, e por isso Miike
nos dá todo o tempo e sentido para que percebamos as ricas nuances
de luz e profundidade que cria. Nesse sentido é que pode-se realmente
dizer que este é o primeiro filme a efetivamente usar o efeito
do 3D ao seu máximo.
O segundo objetivo vem de uma aparente contradição
desta tecnologia: ao mesmo tempo em que ela recria a sensação
espacial com profundidade, ela separa as camadas diferentes (especialmente
os corpos humanos em posições distintas em relação à câmera) como
se fossem verdadeiros “pop-ups”, algo saído de um livro infantil.
O que isso cria como resultado é uma estranha sensação onírica,
de uma certa irrealidade, onde a terceira dimensão acaba resultando
menos naturalista do que as imagens cinematográficas clássicas.
Este elemento funciona muito a favor também da tentativa do filme
de nos instalar não apenas num outro tempo e lugar, como principalmente
numa mitologia. Além disso, não custa notar que boa parte do filme
se resume a relatos de histórias, feitos por um personagem para
outro, e a maneira como Miike usa o 3D aqui amplia fortemente
este sentimento de “contar histórias”.
De
resto, talvez o filme surpreenda quem conhece o diretor como um
irreverente iconoclasta, que aprecia muito brincar com os gêneros
cinematográficos e com as expectativas do espectador. No geral,
Ichimei é realmente um filme incrivelmente clássico, cuja
maior parte da duração se dedica ao registro do melodrama, muito
mais que ao filme de samurais, no sentido dos duelos de espadas
e afins – este fica quase somente para o final do filme, e ainda
assim com um sentido/lógica bem particulares, que não convém adiantar.
No entanto, onde se pode realmente sentir a marca inegável de
Miike é na forma como cada um dos capítulos dessa história se
dedica a descer bastante profundamente nos estados de insanidade
que acabam tomando os personagens, por um motivo ou por outro.
Aí é que todo o classicismo e elegância de Ichimei não
farão com que ele deixe de ser, nem por um segundo, um dos filmes
mais perturbadores a serem vistos recentemente. Pelo contrário
até: sua calma no relato só torna mais chocantes estes mergulhos
sem volta na profundeza da alma humana, mostrando um Miike amadurecido
na manipulação total das ferramentas do seu cinema.
* * *
Drive, de Nicolas Winding Refn (EUA, 2011)
– Competição
Drive é um filme de cinema, interpretado por um verdadeiro grande ator de
cinema. Nicolas Winding Refn e o ator Ryan Gosling se juntam para
criar um antiherói no melhor estilo dos “estranhos solitários”
vividos por figuras como Clint Eastwood, numa chave de interpretação
bastante impressionante por pedir de Gosling, um dos mais expressivos
jovens atores de sua geração, a interpretar na maior parte do
tempo um rosto completamente vazio – rosto esse que vai ganhar
nuances apenas nas cenas onde isso é essencial, e sempre com as
menores inflexões. Mas, verdade seja dita: ele não está só, e
a composição do elenco é um dos principais trunfos deste filme,
que escolhe alguém como Carey Mulligan para interpretar o interesse
amoroso de Gosling – o que acaba resultando que seja uma das mais
palpáveis relações de um filme em algum tempo, sem com que quase
nada seja dito/vivido por eles. Mas tem mais: Ron Perlman e Albert
Brooks usam suas personas ao máximo ao interpretar picaretas que
podem ou não ser muito perigosos (nunca conseguimos nos antecipar
e ter certeza), e figuras fortes da TV recente, como Christina
Hendricks e Bryan Cranston (de Mad Men e Breaking Bad,
respectivamente) dão grande presença a seus papeis menores, mas
essenciais.
A
escolha mais que precisa do elenco não é a única coisa aqui que
faz pensar em Tarantino: Refn também partilha com ele neste filme
uma inspirada escritura de diálogos, uma precisão extrema na realização
de suas cenas de ação (e a capacidade de nos instaurar plenamente
nos espaços), mas acima de tudo um palpável sentido de amor pelo
cinema e por sua capacidade de trabalhar com determinadas imagens
já hiperusadas como se as víssemos pela primeira vez (e claro
que o fato do “The Driver” ser um dublê de cinema, só pode nos
remeter ao Stuntman Mike recente). Só que, se Tarantino sempre
esteve mais próximo de um determinado cinema americano e internacional
principalmente dos anos 70, Refn deixa claro desde o design dos
créditos iniciais e a presença firme de uma trilha sonora rica
em sintetizadores, que seu manancial principal é o cinema físico
de ação dos anos 80. Só que como Tarantino ou De Palma, não se
trata de alguém que se congratula em ter referências cinematográficas,
mas sim alguém que acredita que o que foi feito antes emana um
poder muito firme e específico do qual é possível (e necessário)
que o cinema se nutra e se aproxime.
O resultado prático dessa relação é um filme em
que podemos quase simultaneamente sorrir, e até dar risadas de
prazer, com uma série de momentos de puro cinema (mas não “puros”
em si, atenção), e logo em seguida sermos pegos de surpresa pelas
explosões de violência nada divertidas que o filme propõe – explosões
estas que emprestam ao personagem uma profundidade misteriosa
e trágica muito forte. Não é um filme impecável, porque, particularmente
na segunda parte, Refn volta a momentos menos interessantes da
sua filmografia, e parece mais atento e entretido por alguns malabarismos
de construção visual que tiram fôlego da sua história (algo que
Tarantino nunca faz). Ainda assim, Drive deixa uma impressão
firme de um cineasta capaz de altos até então inesperados.
* * *
This Must Be the Place, de Paolo Sorrentino (Itália/Irlanda, 2011) – Competição
O
mesmo já não pode ser dito de Paolo Sorrentino, este sim um cineasta
que parece sempre disposto a sacrificar qualquer coisa para chamar
atenção para si mesmo e suas brincadeirinhas de cinema. Colocar
um filme dele ao lado dos de Refn ou Miike poderia ser um exercício
didático de compreensão da estética como lugar de construção de
um olhar versus a estética como fim em si mesma. Este This
Must Be The Place até parte de personagens que poderiam nos
interessar, particularmente o roqueiro de meia-idade deprimido,
mas o filme mesmo não se interessa muito por eles, entretido em
fazer seus travellings e gruas constantes (mas se todo
plano tem uma grua, qual o sentido dela afinal?). A isso se soma
uma direção de atores só interessada em histrionismos e cacoetes
constantes (e nem engraçados), e o resultado é que é difícil até
prestar atenção à história que ele conta, para chegar ao ponto
de se incomodar com suas redenções pré-fabricadas e tal. Em Sorrentino,
toda imagem quer ser tudo, e resulta num grande nada.
Maio de 2011
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