in loco - diários de cannes
Dia 2: De verdades e mentiras
por Eduardo Valente

Restless, de Gus Van Sant (EUA, 2011) – Un Certain Regard

A chave mais simples de entrada frente a Restless será a de colocá-lo ao lado de trabalhos como Encontrando Forrester e Gênio Indomável, no sentido de que é uma encomenda de um estúdio e de uma produtora para o diretor, que vinha se dedicando principalmente a projetos bastante pessoais nos últimos anos. No entanto, talvez o mais interessante seja perceber de que maneira este trabalho em especial acaba representando uma curiosa ponte entre os filmes mais “radicais” (na falta de termo melhor) com os (nada desinteressantes, aliás) filmes de estúdio que Van Sant já realizou em sua carreira. Destes, o filme claramente traz, principalmente, um formato no qual ele se encaixa sem medo – na verdade dois, já que ele une o romance teen com “filme de doença terminal” de um Love Story – ao ponto mesmo de se permitir uma brincadeira com um dos maiores clichês do gênero, a sequência de montagem de “momentos felizes” (que aqui tem um outro sentido, dada a necessidade de viver uma relação inteira de memórias em três meses).

Mais desafiador, talvez, seja perceber os traços do cinema “autoral” de Van Sant, presente principalmente no caráter rebelde e desafiador de seus dois protagonistas frente aos papeis sociais que deles se espera que interpretem (e nesse sentido não se pode recusar a “coincidência” de ter o filho de Dennis Hopper como protagonista, o que mais do que um simples fato extradiegético se encarna no filme algumas vezes num olhar que assusta pela semelhança com o do jovem Dennis). A rebeldia dos protagonistas aqui, claro, é bem diferente dos de My Own Private Idaho, por exemplo, mas no fundo mostra uma mesma dificuldade de se conformar com a realidade e todos os limites que ela representa. Não por acaso, o grande pulo do gato do filme vem justamente da presença de um personagem que representa a negação mesmo dos limites dessa realidade: Hiroshi, um fantasma japonês, kamikaze da II Guerra, que acompanha a narrativa como parte bastante importante do trio de personagens principais.

O personagem de Hiroshi, e a maneira como Van Sant o filma, lhe dando considerável tempo de tela e tratando o seu “drama” e curva com uma mistura difícil de graça e seriedade, dão a chave da força que o filme atinge (tanto que é possivelmente dele que vem o grande momento no fecho do filme, que não convém mencionar agora justamente por seu papel central no encerramento da narrativa). Hiroshi, o fantasma, é a própria encarnação da crença de Van Sant no cinema, que é o que não consegue deixar de nos encantar. Não sem alguns momentos em que parece girar um pouco em falso, fascina justamente a entrega com que Van Sant se coloca frente ao universo que cria na tela, uma entrega muito semelhante a de seus casal de protagonistas – um deles vivendo com o desapego de quem perdeu o interesse na vida, e a outra, com o abandono de quem já consegue se ver morta.

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Polisse, de Maïwenn (França, 2011) - Competição

Maïwenn é uma jovem atriz que já tem mais de vinte anos de trabalho em cinema e que, mais recentemente, começou a dirigir. Se este Polisse permitiu sua chegada já bem cedo ao espaço nobilíssimo do cinema mundial que representa a competição do Festival de Cannes (o ápice do reconhecimento no cinema de autor “oficial”, por assim dizer), isso apenas demonstra algo sobre este status: que ele não pede necessariamente um olhar particularmente marcante e único, mas sim que se cumpra com determinados postulados deste mesmo cinema de autor. Não que Polisse seja um mau filme, longe disso até, mas o fato é que passamos por ele todo em busca de algo que leve além deste nível de competência, e a verdade é que apenas raramente ele atinge este estatuto – e, não surpreendentemente dada a origem de sua diretora, quando o faz é através do trabalho dos atores, que atinge alguns pontos bastante fortes e precisos.

No entanto, mesmo quando o filme chega a estes momentos de destaque, é difícil evitar que nos lembremos de um outro filme, um modelo recente que já se demonstra forte no panorama francês (afinal, ele ganhou a primeira Palma de Ouro para o país em muito tempo): Entre os Muros da Escola. Na verdade, o sucesso que Maïwenn atinge aqui, seguindo em grande parte o modelo de trabalho de Laurent Cantet em seu filme (tanto no que se refere ao trabalho de câmera quanto ao dos atores – e aí é particularmente curioso que tenhamos aqui crianças), acaba de alguma forma nos fazendo repensar aquele filme, e o que realmente o tornava potente. Porque é fato que aqui, como lá, o que está em jogo é conseguir nos fazer habitar um espaço e uma forma de vida – no primeiro, o de uma escola secundária e a interação entre professores/alunos; aqui temos uma delegacia de proteção aos menores e a interação entre os policiais e suas vitimas/criminosos (em geral, casos de pedofilia, mas há variações). No entanto, há uma diferença crucial entre os filmes: enquanto a Cantet interessava de verdade explorar o espaço da escola (e particularmente a sala de aula) como “arena de relações”, ao ponto de nunca sair de lá, Maïwenn tem um projeto menos rigoroso, e acompanha a vida dos policiais (e de algumas vítimas/criminosos) também em suas casas e espaços públicos comuns. Embora extraia o eventual momento forte entre os atores em algumas destas cenas, é aí, no entanto, que o filme perde a sua unidade e sua capacidade de surpreender, porque segue em grande parte caminhos dramáticos esperados, e que parecem um tanto esquemáticos para levar ao seu final de “choque”.

É preciso dizer ainda que há no olhar da diretora pros seus objetos um fascínio que é espelhar na tela no da personagem que ela mesma interpreta– justamente o de uma fotógrafa que é colocada no dia a dia da delegacia e acaba se envolvendo pessoalmente com os policiais (inclusive há uma cena com um policial dizendo a ela que não está fazendo as “imagens certas”, porque não dá conta da complexidade do trabalho). Não restam dúvidas de que o trabalho mostrado tem um tanto de fascinante, e até de admirável, mas, ao tentar criar um sentimento de grupo mesmo passando por algumas singularidades que tentam diferenciar os policiais e lhes permitir algumas “fraquezas” e humanidades (principalmente nos interrogatórios), no geral o que temos é um retrato que sempre nos faz ver sua devoção e extrema correção e justeza no trato com o seu trabalho. O que seria um problema secundário num filme de ficção, exceto que este é um daqueles que faz questão de avisar em cartela no começo que é “baseado em situações reais vividas pelos policiais da delegacia de proteção aos menores”. Se pensado assim, de fato há algo de bem esquisito no olhar quase apaixonado que a diretora joga sobre seus personagens, e seu papel social.

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We Need To Talk About Kevin, de Lynne Ramsey (Inglaterra, 2011) – Competição

No começo da década passada, Ramsey lançou em Cannes dois primeiros longas (Ratcatcher e Morvern Callar, ambos exibidos discretamente no Festival do Rio em seus respectivos anos) que, em certo sentido, antecipavam bastante do que se tornaria um estilo recorrente dos festivais no período: uso da câmera para tentar recriar ambiências e sentidos dos seus personagens principais, poucas explicações e tramas e uma aposta grande no sensorial. Os primeiros planos de We Need To Talk About Kevin parecem apontar na mesma direção, com imagens do alto de uma multidão numa “festa do tomate”, onde só após muito tempo se pode reconhecer Tilda Swinton entre as pessoas todas tornadas uma massa disforme avermelhada. São planos que certamente capturam nossa atenção, mas que infelizmente avisam mais de tudo que vai desandar nas próximas duas horas do que realmente servem de bons indícios. Por um lado, eles antecipam algo que vai dominar a primeira meia hora do filme ao ponto da exasperação: uma necessidade de criar planos sempre enormemente belos e “emocionantes” de uma maneira que faria Wong Kar-wai parecer um cineasta descuidado da imagem. Por outro, o tipo de significação rasteira e fácil através de elementos de linguagem, como o uso nas raias do absurdo da cor vermelha ao longo de todo filme.

Durante esta longa introdução, o filme planta ao mesmo tempo uma desnecessária “confusão” (sempre muito bem explicitada) de tempos, e um desejo de criar uma percepção “sensorial” através do trauma da personagem de Swinton que soa hiperesquemática na forma como o discurso audiovisual se relaciona com o mundo dela. Kevin trata basicamente de uma relação doentia entre mãe e filho, um tema bastante atraente até. Só que enquanto o filme parece querer se fazer uma pergunta pertinente e dolorosa, de muito interesse (“o que fazer quando um filho não gosta de você?”), cada vez mais, enquanto ele desenvolve mais linearmente esta relação em seu “segundo ato”, a pergunta que emana da tela é uma bem diferente (“o que fazer quando se dá a luz ao anticristo?”).

Não que haja nada de errado com essa segunda pergunta, que já permitiu alguns belos filmes, particularmente no gênero do terror. A questão é mesmo esta confusão que o filme parece fazer entre o que está de fato filmando, e o que gostaria de estar mostrando. Sua obsessão estetizante e “sensorial” funciona muito pouco quando misturada a um jogo rasteiro de psicologia que perpassa todo filme, e o resultado é um filme que reitera em todos os níveis um mesmo ponto, e que leva quase sempre a cenas efetivamente constrangedoras, como todas que se passam no novo emprego da mãe (uma agência de turismo saída direto de Saturday Night Live) ou as que envolvem o patético personagem do pai, vivido por um John C. Reilly totalmente perdido – tudo desaguando num massacre escolar francamente enojante. Se o final parece nos dizer que o amor materno a tudo resiste, saímos mais acreditando termos visto uma versão estilo “origens” da rainha malvada interpretada por Swinto em Crônicas de Nárnia.

Maio de 2011

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