in loco - diários de cannes
Dia 3: O cinema pode tudo?
por Eduardo Valente
Claro
que a pergunta que dá título a este texto é totalmente retórica,
e que não se pretende respondê-la aqui. Apenas é uma pergunta
que volta e meia convém propor aos filmes, assim como é interessante
pensar de que maneira os filmes mesmo a colocam em suas estratégias
estéticas e/ou narrativas. Os três filmes aqui mencionados iluminam
lados bem distintos desta mesma idéia.
* * *
Habemus Papam, de Nanni Moretti (Itália,
2011) – Competição
Com
seu filme anterior, O Crocodilo, Moretti havia demonstrado
uma coragem notável no que tange à crença no poder (e na permissão)
da ficção cinematográfica de confrontar e encenar não somente
aspectos da realidade à sua volta, como os aspectos mais altos
relacionados ao poder (algo que talvez no Brasil fosse respondido,
legalmente inclusive, com um patético “não, isso o cinema não
pode”). Se lá Moretti confrontava-se (quase literalmente) à figura
de Berlusconi e a sombra que ela projeta sobre toda a Itália,
aqui Moretti se volta à outra figura central relacionada ao poder
na Itália: nada menos do que o Papa. E mais do que isso: ele se
dedica a filmar a eleição de um novo Papa, umas dessas imagens
interditadas ao mundo real – mas não ao cinema, como ele demonstra
ao encenar o mais que secreto conclave papal num estúdio de Cinecittá
(gesto dos mais politicamente ousados em termos de afirmação do
poder do cinema e da ficção).
Mas talvez a grande afronta de Moretti esteja
de fato no que seu gesto tem de mais naturalista, por assim dizer:
embora Habemus Papam transpire por todos os lados uma absoluta
falta de cerimônia e respeito (no sentido mais paralisante do
termo) quanto às maiores autoridades da Igreja Católica (não só
o Papa, mas o conselho dos cardeais), por outro lado ele não cai
na armadilha/solução fácil de uma ridicularização dos mesmos que
passe por um humor que renegue o lado humano destes “homens do
poder”. O que significa dizer que, seja na construção do Papa
recém-eleito (incorporado por um destes monstros sagrados devidamente
beatificados pelo cinema, Michel Piccoli), seja na das figuras
principais dos cardeais ou do porta-voz da Igreja, Moretti e seus
atores se dão ao justo trabalho de construir com afinco suas personas
na tela, lhes dando motivações sinceras (ainda que em muitos momentos
ridículas e/ou risíveis), o que só os implica mais no jogo teatral
envolvido em toda a “construção de um Papa”.
Nesse
sentido, a primeira meia hora do filme é realmente o seu momento
mais impressionante, começando com a mistura das imagens documentais,
passando pelo genial conclave (que mistura respeito aos ritos
como são com intervenções irônicas precisas, que igualam os cardeais
a crianças na escola), e culminando com a crise do Papa e a chegada
da figura do psicanalista interpretado por Moretti. Daí em diante,
porém, particularmente depois que o Papa sai pelas ruas de Roma,
buscando entender melhor o mundo em que é chamado a atuar, e suas
próprias limitações, o filme perde um tanto de seu foco, e a montagem
paralela entre a relação do psicanalista com os cardeais, enquanto
o Papa reencontra suas autênticas “raízes teatrais”, acaba resultando
pouco firme no que concerne suas amarras dramáticas mesmo (algo
que O Crocodilo resolvia tão bem). Se a cena final recupera
um pouco da força do começo do filme, ainda assim Habemus Papam
acaba marcando mais por um gesto de coragem e um início absolutamente
arrebatador do que exatamente por seu todo. Mas, convenhamos,
meia hora de grande cinema já é bastante coisa.
* * *
Hearat Shulayim (Footnote), de Joseph
Cedar (Israel, 2011) – Competição
Arirang, de Kim Ki-duk (Coréia do Sul,
2011) – Un Certain Regard
Meia hora de grande cinema, por exemplo, já é
bem mais do que encontramos nestes dois filmes somados. Não que
seus diretores não tenham pleno domínio do que desejam fazer,
muito pelo contrário: boa parte de suas insuficiências nascem
justamente de um excesso de confiança (no caso do primeiro) e
de uma autoconsciência enorme (no caso do segundo). Em ambos,
o problema do “que o cinema pode” se coloca por caminhos bem diferentes
do caso de Moretti: se ali era uma pergunta antes de tudo política,
aqui se trata de uma questão eminentemente estética.
Para
Joseph Cedar, não existe efeito estético-dramatúrgico que não
valha a pena explorar – e por isso mesmo este seu Footnote
tem o peso de uma refeição em restaurante a quilo, daquelas em
que colocamos tipos distintos de comidas em quantidade muito acima
da nossa real necessidade de comer. Para narrar sua história da
relação problemática entree um pai e um filho que trabalham no
mesmo campo (o dos estudos talmúdicos), e vivem cercados de ciúmes,
carências e inveja, Cedar não se contenta em ter um belo elenco
e um tema forte: ele precisa sublinhar e hiperbolizar cada passagem
da narrativa com movimentos de câmera constantes, trilha sonora
em volumes e intromissão insuportáveis, divisões de tela, idas
e vindas no tempo, e uma divisão em capítulos marcada por grafismos
e espertezas mil. Tudo isso, segundo ele, para tratar de um “tema
humano universal”. Pode até ser, mas os seres humanos saem completamente
afogados de seu exibicionismo de estilo, e uma vez que as nuances
dos estudos talmúdicos já são bastante peculiares à cultura israelense,
a sua aldeia aqui nunca se torna realmente universal, pelo contrário:
o sentimento que o filme passa de fato é de um enorme autismo
israelense, uma sociedade afogada em si mesma e suas microquestões.
Pois é de autismo e autocentrismo que trata Arirang.
Nele, o cineasta coreano Kim Ki-duk filma a si mesmo ao longo
do tempo (quase três anos) em que resolveu se isolar do mundo
numa cabana gelada do interior da Coréia, traumatizado duplamente
por um acidente que quase matou a atriz de seu último filme no
set, e pelo que considera a traição de dois ex-assistentes que
o abandonaram para ir fazer filmes comerciais. Dentro desse panorama,
Arirang até que começa com interesse, com uma hiperdecupagem
desse cotidiano ermitão do cineasta, que
parece dar ao filme um sentimento de ficção de gênero mais do
que filme-diário. Mas é aí que a maré vira: o filme se dedica
então a uma longa (quase 45 minutos) sequência em
que Kim entrevista a si mesmo (ou melhor, sua
“sombra” o entrevista), no que desde já compõe a mais constrangedora
sessão de psicanálise da história do cinema (que começa pelo cinema
mas vai terminar numa crise infantilóide com a humanidade digna
dos... filmes de Kim Ki-duk). O componente patético da confissão
de Kim se mistura com o gesto de egotrip louca de considerar o
seu processo de redenção como algo do interesse de todos – e,
em última instância, do cinema (o que, é verdade, o Festival ratifica
ao selecionar). Ao final, ele retoma um pouco do clima inicial
(assumindo o papel imaginário de um “vingador”), mas infelizmente
já não dá pra não levar a sério um homem que se coloca chorando
ao ver uma das cenas que fez passando no computador, ou que num
certo momento do clímax do filme exibe na tela os cartazes dos
seus 15 longas.
Vendo esses dois filmes, o que nos resta pensar
é que, seja o afogamento dos personagens numa hiperexpressividade
autoimportante, seja o microcinema de um homem só que gira em
torno da sua vaidade e mais nada, sim, o cinema pode ser tudo.
Mas será que precisa ser?
Maio de 2011
editoria@revistacinetica.com.br
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