in loco - diários de cannes
Dia 5: Corpos em evidência (ou "seja bem vindo, sexo!")
por Eduardo Valente

Nos primeiros dias (ou pelo menos no recorte que foi feito ao longo deles por minhas escolhas entre os pratos oferecidos pelo buffet de Cannes), o Festival dedicou-se quase que exclusivamente ao trauma, ao desvio, à anormalidade que geralmente desembocava em violência. Neste panorama, em geral um ilustre ausente foi o sexo – pois mesmo quando havia relações sexuais em tela entre os personagens, elas surgiam ou com o peso do “problema” (Sleeping Beauty ou Michael), ou sob a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, iam resultar em algo errado (Kevin). Nesta segunda, finalmente, o encontro entre os corpos, sem precisar deixar de ser problematizado, surgiu nas telas como potência em si mesma, e não um condicionante para algo, sendo usado como ferramenta narrativa/didática/traumatizante.

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L’Apollonide – Souvenirs du maison close, de Bertrand Bonello (França, 2011) – Competição

Tomemos como exemplo o filme de Bonello: nele, tudo gira em torno do sexo, algo até natural para uma história que reconta os últimos meses de uma chamada “casa de tolerância” – expressão que não apenas designa um termo pleonástico para bordel, mas que trata de uma situação específica de empreendimentos legalizados e onde a prostituição recebia um outro tipo de estatuto. Não que, por conta dessa legalização, a condição problemática e eventualmente violenta das relações de poder e de trabalho a partir do sexo sejam idealizadas, longe disso: há bastante sofrimento relacionado com o sexo em L’Apollonide, um filme que não fecha os olhos para o tanto de problemas enfrentados por suas personagens. No entanto, este sofrimento surge sempre matizado por todo o resto que está em jogo no complexo teatro das relações na “casa de tolerância” – inclusive palavras como prazer, libertação e esperança.

Teatro, aliás, é expressão clara e necessária de ser usada, porque existe em toda a encenação de Bonello um reconhecimento dos aspectos principais de construções de fantasias, jogos e personalidades a partir da representação das personagens (tanto femininas como masculinas) dentro do espaço do bordel, onde quase exclusivamente se passa todo o filme. Um teatro, porém, que tem muito de planejado e ensaiado, mas também do improviso que vem dos impulsos mais momentâneos e impensados – algo que fica dolosamente claro logo na primeira grande sequência, que nos apresenta um jogo de sonhos e projeções entre uma das prostituas e seu cliente, algo que vai terminar bastante mal. Bonello, como boa parte dos melhores cineastas franceses ao longo da história, sabe porém que a idéia de teatro não precisa se equivaler ao chamado “teatro filmado”, pelo contrário: seu filme é, disparado, o gesto cinematograficamente mais forte e poderoso entre os que foram apresentados na competição até agora – um filme que só existe a partir de e para a câmera (para não falarmos do uso do som e da trilha sonora), e esse certamente é um dos vários pontos que farão lembrar do majestoso Flores de Xangai, de Hou Hsiao-hsien, um filme do qual certamente L’Apollonide está plenamente consciente, mas que também é tão diferente deste quanto, digamos, Taiwan é da França.

Desde os créditos iniciais, onde só aparecem nomes de atrizes, fica bem claro que L’Apollonide é um filme sobre, para e pelas mulheres. Os homens surgem em cena e são determinantes na narrativa, mas nenhum deles parece existir de fato para além dos papeis que interpretam aos olhos e sonhos das mulheres – agressor, protetor, expectativa de libertação, peso a carregar (literalmente). Bonello se dedica aqui a filmar e olhar para os corpos (e rostos) femininos com a dedicação e o fascínio que eles merecem, parecendo fascinado pelos inúmeros universos que cada uma delas carrega dentro de si. É ainda um raro filme sobre a camaradagem entre as mulheres, e as cenas de grupo entre elas (como os momentos em que se preparam para a noite de trabalho, ou a escapada no campo) são algumas das mais bonitas do filme. É, em suma, um filme que, frente ao mistério do feminino e a questão difícil da prostituição, opta por se colocar de frente, sem medo de encontrar ali o potencial poético que existe, mas sem precisar, ao fazer isso, fingir que seja o que não é – no fundo, uma prisão como muitas outras.

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Bonsái, de Cristián Jiménez (Chile/França, 2011) – Un Certain Regard

As mulheres também estão no centro de tudo que move este filme chileno, ainda que aqui o protagonista seja um homem – que, como não chega a ser incomum no cinema (ou na vida) responde e age sempre de acordo com aquilo que quer projetar para elas. Só que se é bastante óbvia maneira como o sexo está no centro de L’Apollonide, em Bonsái esta presença pode e deve ser vista em outra dimensão, certamente não menos decisiva – o que talvez, curiosamente, torne o filme ainda mais raro enquanto objeto do cinema atual. Sim, porque no filme de Jiménez ele surge como um dos elementos formadores da personalidade e da vida do seu protagonista, sem precisar de muito mais elaboração em torno. O chama a atenção no filme é a maneira como os corpos são filmados com uma tranqüilidade e calma que é surpreendentemente rara no cinema: são pessoas, fazem sexo, isso muitas vezes é o que os motiva, em outros momentos não, e vamos adiante. Essa é um pouco a qualidade maior que o filme tem, aliás: sua capacidade de mergulhar nas profundezas de algumas questões bastante firmes e dolorosas (como a dificuldade em encontrar sua própria voz no mundo, ou o tanto que as relações amorosas respondem a construções quase ficcionais de si mesmo e do outro), mas fazendo-o sem nenhuma necessidade de sublinhar que “atenção, estamos tratando aqui de temas profundos”.

De fato, Bonsái vai certamente ser descartado por muitos justamente pela capacidade (e até facilidade) que tem de ser degustável, agradável aos olhos e ouvidos (talvez um pouco demais aos olhos, numa fotografia que, já incrivelmente límpida, se torna quase opressivamente bonita na projeção digital hiperluminosa de Cannes – algo que levou Woody Allen, por exemplo, a preferir projetar seu filme em 35mm, dizendo justamente que o digital parecia “limpo demais”). No entanto, esta capacidade, já demonstrada por Jiménez em seu primeiro filme (Ilusiones Ópticas), se deve bem menos a um desejo de tornar o mundo menos complicado na tela (basta ver o trajeto cumprido pelo protagonista), mas sim de usar um formato que permite criar uma inegável distância entre o tom do filme e seu conteúdo. Porque Bonsái, a bem da verdade, é um filme muito, muito triste, sobre algumas das mais elementares e duras solidões com que lidamos no mundo – justamente as solidões compartilhadas, e a de nunca se sentir capaz de viver o tempo presente. A maneira como ele se disfarça (ou até se assume) como um conto adolescente de encontros e desencontros se revela uma precisa armadilha para envelopar sua dureza numa forma que não apenas a torna pregnante como, mais ainda, reproduz um pouco o que todos nós fazemos para lidar com essas questões: tentar torná-las parte de uma narrativa pessoal com alguma diversão e leveza para que a vida, afinal, não se torne completamente insuportável.
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Porfírio, de Alejandro Landes (Colômbia/Argentina/Uruguai/França, 2011) – Quinzena dos Realizadores

Em Porfirio, o corpo é determinante de toda a narrativa, já que toda ela se constrói a partir desse homem que se encontra paralisado da cintura para baixo por conta de um tiro dado por um policial. Desde os primeiros planos, sua condição, e a maneira como ele enfrenta seu cotidiano a partir dela (com a ajuda do filho e de uma mulher), são claramente o foco da observação da câmera de Landes. Essa câmera nos lembra demais neste começo, por conta tanto do uso do formato scope 35mm (algo a princípio raro numa perspectiva observacional), quanto pelo fato de que há algo de patético nas imagens que testemunhamos (o processo de dependência dele do filho para tomar banho e mesmo defecar), o cinema de Carlos Reygadas ou de seu pupilo Amat Escalante. No entanto, na medida em que desenvolve sua duração, Porfirio se afasta mais destes modelos, conseguindo o difícil equilíbrio entre os limites do miserabilismo por um lado (“olha que horror!”), e do exotismo alegre por outro (“olha que edificante!”). Porfirio vai se estabelecendo mais e mais como personagem de uma ficção (ainda que seja a ficção de si mesmo), e é nisso que o sexo se mostra essencial no filme: as duas cenas em que ele se relaciona com sua namorada são impressionantes tanto por sua frontalidade como por sua elaboração estética. Entendemos ali o quanto performar para a câmera é essencial para que esse homem se relacione com sua própria história – algo que evolui para o final bastante surpreendente (algo nada aleatório, já que foi o que levou o diretor a se interessar pelo personagem em primeiro lugar). Ao final, o trabalho se impõe, queiramos apreciá-lo seja pela simplicidade com que narra uma história complexa ou a complexidade com que encena uma realidade simples.

Maio de 2011

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