in loco - diários de cannes
Dia 6: Peixes fora d’água
por Eduardo Valente

The Tree of Life, de Terrence Malick (EUA, 2011) – Competição

É curiosa a sensação de sentar para escrever sobre The Tree of Life pois, apenas 24 horas depois de sua primeira exibição, tamanha foi sua repercussão em Cannes que sentimos como se provavelmente tudo que se poderia dizer nessa situação (de uma primeira visão, e com a maioria dos leitores ainda não tendo podido ver o filme) já foi dito. É o problema dessa cobertura de grandes eventos internacionais com a abundância de fontes e pressa de resposta, pois os filmes são um pouco moídos logo depois de saírem do forno – e, particularmente para um filme como The Tree of Life, eu duvido muito de quem sai da sessão cheio de certezas a vaticinar.

Da minha parte, pelo menos, eu posso dizer que eu só saí com dúvidas, não só do filme todo, mas praticamente de quase todas as sequências do filme. Isso porque claramente a entrega de Malick ao seu projeto é tamanha que a sensação que fica é a de uma completa perda de distanciamento, exibindo o filme o tipo de “primeira pessoa” onde o sublime se aproxima muito do ridículo dependendo muito pouco do que acende qual lâmpada em qual espectador. Quando eu ouço um amigo dizer que o filme é “exagerado e óbvio”, e o outro diz que ele é “completamente revelador”, eu acho que claramente o filme permite, e talvez até exija os dois tipos de resposta a ele pois as imagens/sons colocados na tela por Malick certamente transitam por estes dois campos, onde talvez dependa mais do desejo de um espectador se deixar levar por elas com uma certa infantilidade da construção, despindo-se da carga que muitas delas já carregam, ou pelo lado oposto, se blindar frente a elas.

Sim, porque curiosamente o filme tem muito de infantil, e isso talvez faça bastante sentido quando pensamos que ele se passa quase todo em torno da idéia de infância, educação e crescimento (não apenas de alguns dos principais personagens, mas de toda humanidade/universo mesmo). E se, de fato, a comparação mais óbvia (mas nem por isso possível de se evitar) que o filme possa suscitar seja com o 2001 de Kubrick (inclusive, certamente não é por acaso que Malick traz de volta ao cinema aqui Douglas Trumbull, o mestre dos efeitos especiais por trás daquele filme), um amigo talvez tenha me dado a melhor chave de abertura dos caminhos de The Tree of Life dizendo que o filme que ele realmente se parece seria Nostalgia, de Tarkovski - mas eu adicionaria à equação o Fantasia, de Walt Disney. O que os três filmes têm em comum é uma tentativa de conectar a experiência humana na Terra com alguma força maior, necessariamente inexplicável, que tanto determina e afeta quanto parece criada pelos olhos e mentes humanas – o monolito kubrickiano, afinal, parece só adquirir sentido quando tocado por um ser (seja fisicamente, na tela; seja pelos olhos do espectador). Claro que os estilos e momentos históricos dos filmes/cineastas são absolutamente distintos, mas o que os une, e é admirável, é essa maneira de acreditar que o cinema é capaz de filmar (ou animar) essa outra coisa, esse inexplicável, essa transcendência – ou, como dizíamos outro dia por aqui, acreditar que o “cinema pode tudo”.

Por isso é que eu acho tão complicado acreditar que alguém consiga se colocar diante de sequências como a da criação do mundo nesse novo Malick e não se maravilhar: porque não é uma questão do que ele tem a dizer, mas sim do que ele está disposto a filmar – e ali há algumas imagens simplesmente inacreditáveis. Da mesma forma, a maneira como ele se pergunta, e pergunta ao mundo, “por que?” após a morte de um filho é desarmada e pregnante demais para não se tocar. No entanto, também é verdade que toda parte do filme que inclui Sean Penn parece deslocada e descontrolada (num mau sentido, aqui), e o que parece é que Malick sempre atingiu mais o transcendental ao filmar os corpos e a natureza do que aqui, onde vai em busca de um “sobrenatural”. Mas talvez tenhamos que nos acostumar com a ideia de que um filme em que se está disposto a tudo, a um tal desnudamento de subjetividade, terá necessariamente que vir com o que é aceitável ou inaceitável para cada um de nós. E que considerá-lo uma obra-prima ou um lixo seriam dois lados da mesma moeda arrogante: a de acreditar que se pode acessar completamente um outro ao ponto de aceitá-lo ou recusá-lo completamente.

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The Artist, de Michel Hazanavicius (França/EUA, 2011) – Competição

Se o gesto de cinema de Malick é um que parece tão extemporâneo/estrangeiro justamente por responder a anseios absolutamente pessoais frente ao mundo, o filme de Hazanavicius tem uma dimensão um pouco pré-concebida demais, com sua idéias sobre o que significa fazer hoje um filme silencioso sobre o cinema americano da época da chegada do cinema sonoro. Não que ele não seja inteligente e sensível ao ponto de atingir alguns efeitos fortes (particularmente o momento em que o personagem consegue ouvir o mundo à sua volta e se descobre em desacordo com ele), mas é que o necessário fetichismo que traz consigo, que é inerente à sua proposta, acaba também criando um empecilho emocional forte, pois tudo é calculado demais. No entanto, é preciso que se diga que, para além de sua considerável maestria técnico-visual, o que mais fica de The Artist é mesmo o quão fundo ele se dispõe a ir na inadequação que o personagem passa a sentir com o mundo à sua volta a partir do momento em que é descartado como “algo do passado”. São os momentos em que o filme efetivamente ultrapassa qualquer dimensão de “que fofinha essa recriação do cinema mudo”, e coloca-se mesmo de frente ao velho problema da impossibilidade de encontrar sentido no todo à sua volta. Talvez, se ele fosse um personagem de Malick, fosse a hora de perguntar “por que?”. E essa pergunta sempre nos toca de alguma maneira.

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Martha Marcy May Marlene, de Sean Durkin (EUA, 2011) – Un Certain Regard

No entanto, como podemos ver nesse filme de Sean Durkin, por mais cara que seja ao cinema a sensação de incapacidade de um personagem para se conectar com o mundo à sua volta, por si mesma essa potência não garante um filme que se confirme plenamente potente. Desde o título, o filme anuncia uma personagem que assume diferentes nomes/facetas como quem busca se encontrar e se sentir parte de algo maior do que sua solidão – e, no entanto, fracassa todas as vezes. Passado em dois tempos que acompanhamos alternadamente, Martha Marcy May Marlene conta com boas atuações, com uma fotografia inteligente e pensada, mas acaba desperdiçando não apenas uma, como duas boas premissas (a vida dentro de uma seita fechada; e a saída dos confinamentos desta não resultando em necessário alívio/melhora), principalmente por sentir uma estranha necessidade de criar suspense, clima. O problema é que isso não surge naturalmente na tela, e ficamos sentido da parte da construção do filme o esforço constante nesse sentido (particularmente perceptível no uso da trilha sonora), o que acaba infelizmente nos afastando da personagem e do que se passa em torno dela, nos fazendo pensar e sentir mais o mundo que o diretor gostaria de criar do que aquele em que ela vive de fato.

Maio de 2011

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