in loco - diários de cannes
Dia 7: Contos da Quinzena
por Eduardo Valente

A Quinzena dos Realizadores construiu sua marca ao longo dos anos tanto como descobridora e lançadora de alguns dos principais talentos que depois se confirmariam na cena internacional, como aquele lugar que recebe os filmes de alguns cineastas consagrados, donos de assinaturas fortes e reconhecíveis, em algumas de suas obras talvez consideradas radicais e/ou pequenas demais para o palco da competição (nos anos marcantes em que Olivier Père esteve à frente da programação, isso terminou levando para lá nomes como Francis Ford Coppola, William Friedkin, Jean-Claude Brisseau, ou filmes como o The Host, de Bong Joon-ho). Neste segundo ano do novo diretor artístico Frederic Boyer, nós percebemos a Quinzena ainda tentando achar uma nova força e identidade, mas nenhuma das suas apostas iniciais chegaram ainda a causar grande repercussão (neste ano, em particular, a seleção da Semana da Crítica vem causando muito mais buzz pelo Festival do que a da Quinzena – talvez, inclusive, por ser menor e mais direcionada). Aproveitando a ocasião de ter um filme brasileiro passando por lá, apoveitamos para conhecer outras seleções deste ano na Quinzena, e deu para perceber (junto com alguns filmes já vistos/relatados por aqui – e ainda veremos muitos mais, inclusive na semana seguinte ao Festival, em Paris) um pouco do painel que vem se desenhando por lá.

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O Abismo Prateado, de Karim Aïnouz (Brasil, 2011) – Quinzena dos Realizadores
Corpo Celeste, de Alice Rohrwacher (Itália/França, 2011) – Quinzena dos Realizadores

Não é difícil, lendo esses títulos “em português” (no caso do segundo, de fato um título em italiano, mas como as palavras são as mesmas...), perceber uma certa sensibilidade poética aproximada que indica um certo caminho de apreensão do cinema em comum. Para além disso, e muito adequadamente, vale notar que há ainda uma outra aproximação: são filmes que tentam lidar com um certo estar no mundo a partir da figura feminina, bastante focados em sua personagem/atriz principal, e que narram pequeníssimas histórias banais, em busca do universal/pessoal existente nelas. Os filmes correspondem ainda às duas linhas de força atendidas pela Quinzena conforme citamos acima: o primeiro é obra de um cineasta que já possui sua marca/assinatura (afinal, este é o quarto filme de Karim Aïnouz, sendo todos os anteriores exibidos ou por Cannes ou por Veneza), mas que aqui trabalha em tom menor; e o segundo é um filme de estreia em longa-metragem – ambas as condições, aliás, bastante determinantes nas qualidades (principalmente no primeiro) e defeitos (principalmente no segundo) dos dois filmes.

O Abismo Prateado parece um gesto ao mesmo tempo altamente inesperado, e profundamente coerente dentro do trabalho de Karim Aïnouz. Inesperado por ser, antes de tudo, um filme de encomenda de um produtor, ainda uma raridade no Brasil, e muito mais ainda dentro do campo do chamado “cinema de autor”. Mas, ao mesmo tempo não custa lembrar que nos últimos anos o diretor esteve envolvido com uma série de TV feita para a HBO (Alice), e, de fato, talvez seja este o trabalho que mais nos ajude a compreender este novo filme. Como em todos os três filmes anteriores de Aïnouz (e a série), trata-se aqui de um trabalho altamente ancorado na figura e na sensibilidade de seu protagonista, alguém em estado de profundo estranhamento, e eventual confronto, tanto com seus sentimentos como com o mundo que a cerca. Na verdade, passando-se todo na duração de um dia/uma noite, O Abismo Prateado condensa essas questões, e pode mesmo ser visto como uma versão pocket do cinema de Aïnouz – e, não, isso não é uma crítica, porque talvez venha daí o que o filme tem de mais forte: o fato de que não tenta exatamente contar uma história nem estruturar um personagem, mas simplesmente capturar um sentimento, uma forma bastante específica e momentânea de estar/se sentir no mundo (o abandono).

A questão que se coloca, porém, a partir da maneira como o filme externaliza esse sentimento através da estética é a seguinte: com seus 3 longas e sua série, o diretor já descobriu (e contruiu) um domínio bastante completo desta maneira de filmar/encontrar o seu objeto de atenção. O que parece começar a fazer falta a ele agora é o desafio do desconhecido, do atirar-se em falso que, de alguma maneira, marcava algo como Madame Satã e, até certo ponto, O Céu de Suely – e, não por acaso, fazia deles, nesta ordem, seus trabalhos ainda hoje mais fortes e pregnantes. Porque, sem dúvida, com o apoio da fotografia de Mauro Pinheiro Jr e o desenho de som de Waldir Xavier, dois profissionais com grande conhecimento de suas áreas e um sabido raciocínio criativo forte, o filme cria momentos de grande força estética/humana (particularmente as cenas no motel e no prédio em construção), além de filmar o Rio de Janeiro (e Copacabana) com cores e visões ainda não vistas. Mas, ao mesmo tempo, a repetição de determinadas ferramentas estético-narrativas (o uso da pouco profundidade de foco “destacando” os personagens do exterior, o laconismo poético dos encontros humanos) nos soam menos sentidas e muito mais “planejadas” do que seria desejável num filme sobre, em última instância, um descontrole. A impressão que fica, ao final, é a de que O Abismo Prateado funciona como um exemplar bastante condensado de tudo que o cinema de Aïnouz construiu até aqui (pro melhor e para o mais perigoso caminho do conforto), que sinaliza com urgência a necessidade de novas buscas a serem empreendidas por ele.

em Corpo Celeste, os problemas seguem justamente no caminho contrário: se por um lado este primeiro longa se ressente bastante da falta de uma voz consistente e única por trás de mais este conto de passagem à vida adulta, por outro ele sofre ainda mais com uma incapacidade de decidir-se por um caminho e desenvolvê-lo. Ao misturar o seu lado pessoal (a descoberta do seu corpo adulto – e dá-lhe cena de primeira menstruação em momento constrangedor -, as relações difíceis com a família e com a comunidade em volta) com uma pretensa crítica aos papéis interpretados pela instituição religiosa católica nas pequenas cidades italianas da Calábria, o filme de Rohrwacher acaba repisando o óbvio seguidamente nas duas instâncias, beirando o constrangedor nas cenas das aulas de catecismo que tentam ironizar esta educação religiosa, mas o fazem de maneira completamente banal. É curioso lembrar que no ano passado mesmo a Quinzena havia apresentado um filme que tocava praticamente nos mesmíssimos temas, mas que, embora fosse pouco notável, ao menos revelava um interesse pelo humano minimamente tocante. Este aqui é apenas a repetição da repetição, depurada de qualquer força própria.

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Des jeunes gens mödernes, de Jerôme de Missolz (França, 2011) – Quinzena dos Realizadores

No entanto, ao mesmo tempo é delicioso ver que a Quinzena ainda está aberta a passar algo tão pequeno e incrivelmente idiossincrático quanto esse Des jeunes gens mödernes. Trata-se de um autêntico filme-ensaio, no qual um grupo de jovens músicos e críticos de música de uma revista se encontram com um “ser mítico”, na figura da chamada sombra de um crítico de música dos anos 60-70, e a partir desse contato embarcamos numa verdadeira trip que alterna lugares como Nova York, Pequim e Paris, e tempos, entre os anos 60, 70, 80, e a atualidade. Muitas das referências e presenças do filme são extremamente cifradas para quem não conheça detalhes da música francesas (particularmente no momento da explosão do punk e o seu entorno), mas não é preciso entender para capturar uma energia viva que pulsa do filme, e o torna tão inquieto nas suas idas e vindas de tempo, personagens, formatos. Aqui, não se “documenta” de fato nada, não há contextualizações nem explicações, mas sim o desejo de reproduzir um sentimento artístico de mundo, e estabelecer pontes as mais inesperadas. É, de novo, um pequeníssimo filme, que pouco deve viajar para depois daqui, mas que se exibe num festival tão inflado e cheio de si como Cannes com grande frescor. E só mesmo na Quinzena.

Maio de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


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