in loco - diários de cannes
Dia 9: Pequenos
grandes pequenos homens
por Eduardo Valente
In Film Nist
(This is Not a Film), de Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb
(Irã 2011) – Sessão especial
O
título irônico de This is Not a Film, para além da referência
irônica ao quadro de Magritte, claro que se refere ao fato de
que Jafar Panahi foi condenado no ano passado pela justiça (termo
usado aqui de forma bem ampla) iraniana a uma pena de 20 anos
impedido de fazer filmes. Portanto, há no título uma segunda e
mais forte ironia: afirmar que isso não é o filme seria afrontar
duplamente o regime, ao exercer sua profissão, ao mesmo tempo
negando fazê-lo com um sorriso (triste) no canto da boca. Temos
aqui, então, um homem que já esteve preso e corre o risco de voltar
à prisão a qualquer momento, afirmando por um ato que prefere
qualquer punição ao ato de não fazer filmes. Este gesto por si,
independente do que estivesse na tela, já seria forte o suficiente
para tornar o trabalho um objeto de suma importância. No entanto,
o mais surpreendente é que, para além de qualquer contexto externo
a ele, This is Not a Film é um trabalho incrivelmente forte
e potente pelo que se dá na tela – possivelmente, aliás, o melhor
filme de Panahi.
Ele começa como um diário de vida do Panahi preso
à sua rotina. Logo, porém, entra em cena Mirtahmasb,
documentarista iraniano que deseja mostrar os cineastas locais
que se encontram impedidos de trabalhar, e do jogo que passa a
acontecer entre os dois nasce a força de This is Not a Film.
Por um lado, temos Mirtahmasb claramente imbuído de uma missão
estritamente política – para ele o importante é documentar esse
momento, criar imagens que eternizem e dêem luz ao que é secreto
e escondido. No entanto, seu objeto (Panahi) não aceita ser isso:
um objeto político. Imediatamente sonha tornar aquela oportunidade
num gesto artístico – logo, pois, num filme. Porém, a recíproca
é verdadeira: acostumado a “mandar”, a criar sua própria obra,
Panahi se pega surpreendido por uma câmera que não pára de filmar
apenas porque ele disse “corta!”. Assim como Mirtahamasb não poderá
criar o documento que gostaria, Panahi também não poderá fazer
o filme que deseja – a obra resultará necessariamente do jogo
de interesses conflitantes (e complementares) entre os dois. Só
que enquanto Mirtahmasb parece satisfeito no jogo novo que lhe
é proposto, Panahi se angustia com os instintos do cineasta de
ficção que sempre foi: seria isto que eles fazem realmente um
filme? – e aí o título deixa de ser apenas uma impostura irônica
de ordem política, e vira realmente algo vivido dentro do filme.
Porém,
não são estes os dois únicos vetores em jogo: como bem se lembra
Panahi, citando (e exibindo na tela de uma TV) o processo de seus
filmes anteriores, existe um momento onde o filme passa a ser
dirigido naturalmente por outros elementos – como os atores ou
a locação. Logo, é o que acontece aqui: seja pela presença quase
surreal do lagarto de estimação da família Panahi (que literalmente
rouba algumas cenas), seja mais adiante pela sequência estupefante
em que um terceiro elemento/personagem entra em cena e passa a
comandar o olhar e a narrativa da câmera. É tudo tão forte, orgânico
e surpreendente, que não podemos deixar de nos perguntar: será
que isso é verdade mesmo, está tudo acontecendo naturalmente ao
longo de um dia em que Mirtahmasb simplesmente
resolve ir filmar Panahi preso em casa? O não-filme passa, então,
a ganhar algumas das características metalingüísticas ao ponto
do absurdo que faziam a força dos melhores filmes do próprio Panahi
ou de Makhmalbaf e Kiarostami há coisa de 15, 20 anos.
Mas existe uma última dimensão ainda que invade,
literalmente, o filme: a realidade iraniana fora das janelas do
apartamento em
que Panahi encontra-se “enterrado vivo” (ao lado
da TV, está o DVD do filme Buried – será que acreditamos
em mais uma coincidência mágica?). Se Panahi não pode filmar é
justamente porque o regime iraniano teme como ele mostra o que
está se dando agora nas ruas das cidades – e talvez This is
Not a Film pudesse se resumir apenas a um exercício metalingüístico
sobre o poder (ou falta dele) do cineasta, um jogo sobre o estatuto
contemporâneo das imagens caseiras ou um gesto de insubmissão.
No entanto, o dia que eles filmam é marcado pela “festa dos fogos
de artifício”, manifestação popular rejeitada pelas autoridades
religiosas. E, com isso, a cidade lá fora invade gradualmente
a cena: primeiro, pelo som; logo, pelas notícias que não param
de chegar pelo celular (e a preocupação dos dois cineastas com
seus familiares que estão na rua); finalmente, pelas imagens dos
fogos de artifício que eles não conseguem evitar de filmar, uma
vez que a noite cai. Quando o filme já parece atingir seu ápice
de força de opressão do espaço fechado, porém, a sequência final
termina de nos sacurdir como um terremoto: Panahi não consegue
mais continuar preso aos confins de seu apartamento, e o filme
se encerra numa imagem extraordinária.
O que acontece a seguir, na vida real, com Panahi
e Mirtahmasb (e o Irã)? Isso ninguém sabe, nem eles. No entanto,
no gesto artístico e político, tornados radicalmente um só, que
é This is Not a Film, eles emprestam ao mesmo tempo um
testamento, um testemunho e uma recriação (como só pode fazer
a arte) de tempos excepcionais – com todos os sentidos do termo.
Não é pouca coisa – e, aliás, talvez seja o maior dos filmes projetados
em Cannes em 2011 (ironia final que o título adquire para além
dele mesmo).
* * *
L’exercise de l’Etat, de Pierre Schoeller (França/Bélgica, 2011) – Un Certain Regard
Pater, de Alain Cavalier (França, 2011)
– Competição
De todas as combinações entre dois filmes, que
sempre terminamos propondo a partir de experiências como a da
cobertura do Festival de Cannes, certamente nenhuma (nem mesmo
a que aproxima os filmes de Malick e Von Trier de forma tão clara)
é tão óbvia, direta e, ao mesmo tempo, urgente quanto a desses
dois filmes franceses. São dois filmes sobre o exercício do poder
político, mas que encaram seus objetos por caminhos simetricamente
opostos – e, como quase sempre é o caso em algo assim, complementares.
Dos dois, a princípio o mais convencional é L’exercise
de l’Etat, filme que não pode ser mais cristalino em seus
objetivos do que seu título: trata-se de fato de um ensaio/recriação/descoberta
do que é o tal “exercício do Estado”, compreendido aqui como os
dilemas e dramas do cotidiano do “homem político”. Pierre Schoeller
sabe definir exatamente o que quer mostrar, exatamente pelo que
recusa: o filme escolhe um recorte a partir da ficção do dia a
dia de um ministro de Estado (no caso, dos Transportes) – figura
próxima o suficiente do centro do poder para permitir observações
esclarecedoras, mas ao mesmo tempo longe o suficiente de uma exposição
midiática como a de um Presidente, que tornaria o projeto todo
em uma outra coisa do que o exercício da rotina de trabalho. Além
disso, escolhe um ministro que não é exemplo modelar de um herói
político, nem também a imagem simplista do corrupto contumaz desinteressado
dos resultados de seus atos: o personagem interpretado por Olivier
Gourmet é ao mesmo tempo um homem de idéias, mas também alguém
que entende que o jogo político é de um de negociações (muitas
vezes deprimentes e baixas), não apenas dentro do poder como (até
principalmente) em relação à imagem pública e a dimensão midiática.
Mais do que apenas (apenas?) dar conta de tudo isso, porém, Schoeller
sabe (e se interessa) pelo fato de que um Ministro não é uma instância
isolada de atos e declarações, mas sim que funciona como parte
de uma equipe (assessores, secretárias, escritores de discurso,
pesquisadores, seguranças, motoristas, etc). Dentro dessa equipe,
o material para o drama é vasto, nas inúmeras negociações diárias
de espaço, visibilidade, ganhos e perdas de discussões e posições
– e é disso tudo, em suma, que Schoeller quer tratar.
Contando com um elenco que funciona incrivelmente
bem tanto em grupo como nas presenças individuais (liderados por
Gourmet e Michel Blanc em atuações impressionantes), Schoeller
poderia se dar por satisfeito por apresentar uma espécie de “docudrama”
esclarecedor e cheio de pesquisa sobre estes rituais cotidianos
do poder político – algo que o filme não deixa de fazer. No entanto,
ele acredita bastante na ficção, e leva adiante noções importantes
como a de drama, suspense, ritmo, subjetividade e imaginação –
coisas que escapam ao dia a dia banal de trabalho. Através de
tudo isso, cria um filme que nos captura tanto por sua força de
enunciação quanto por sua capacidade de criação de cenas e de
imagens marcantes (sendo a do acidente automobilístico apenas
a mais notável de tantas outras). Schoeller é, inegavelmente,
um homem de cinema e não um cronista político – e isso favorece
muito L’exercise de l’Etat, que ainda que sofra de uma
certa inflação de tempo/clímaxes (tantos são seus enfoques e interesses),
nunca deixa de cativar e surpreender.
Ao
gesto de Schoeller se opõe, então, o de Cavalier (em parceria
quase total com o ator Vincent Lindon). A dupla também é fascinada
pelo jogo e o teatro do poder (expressão essencial também no filme
de Schoeller, a ver como começa com contraregras colocando os
móveis em cena) – só que duvida a priori da possibilidade,
ou melhor seria dizer, da necessidade, de todo espetáculo grandioso
de reconstituição, típico do cinema (e dos quais Schoeller faz
uso exemplar), para atingir a verdade deste teatro – porque talvez
ela nem exista, afinal. Para Cavalier e Lindon bastam dois homens
e alguns ternos para que se possa “brincar” (palavra cara ao filme)
de ser o Presidente e o Primeiro Ministro da República Francesa.
E é isso que os dois vão fazer então ao longo dos 100 minutos
de Pater: como dois meninos munidos de suas câmeras caseiras
digitais, filmam um ao outro enquanto cada um deles assume um
dos papeis – e nesse ponto é preciso dizer que há lembranças do
filme de Panahi/Mirtahmasb aqui, ambos usando praticamente a mesma
estrutura de uma casa/dois homens/duas câmeras.
O projeto todo trata-se de mais um adorável gesto,
que empresta novos caminhos, ao recente radicalismo de Cavalier
em seu cinema “isso não é um filme”. No entanto, há algo em Pater
que parece não funcionar exatamente, e esse algo talvez venha
essencialmente do seu (não) roteiro. Porque Lindon e o diretor
são presenças certamente cativantes na tela, e suas pequenas brincadeiras
eventualmente conseguem ressoar questões bastante sérias – da
política e do cinema (e da política do cinema). Porém, em suas
bases totalmente improvisadas, o filme também atinge vários momentos
em que parece que estamos vendo algumas daquelas fitas caseiras
feitas inocentemente por amigos, que parecem mais importantes
e interessantes de fato para quem as faz do que para que as assistamos.
Não é uma sensação que está fora do horizonte das intenções de
Pater, é verdade, mas não é porque entendamos o conceito
que necessariamente conseguimos apreciar a forma final que ele
toma. Melhor nas partes do que no todo, Pater termina se
repetindo bem mais do que seria desejável.
(Para terminar, vale uma curiosidade sobre outros
tipos de jogos de poder: por todo seu escopo e qualidade de realização,
seria absolutamente esperado que L’exercise de l’Etat tivesse
vaga na competição em Cannes – no entanto, o filme tem entre seus
produtores ninguém menos do que os irmãos Dardenne, e isso em
a princípio empresta força e prestígio ao filme, também pode ter
impedido essa maior presença/visibilidade, já que os irmãos já
tinham um filme seu em competição. Por outro
lado, o filme de Cavalier parece um OVNI na mesma competição,
dado seu escopo e radicalismo de forma, no entanto a força da
marca do seu nome garante que algo que, se feito por um iniciante
resultaria assassinado na recepção dada a ele neste espaço, termine
sendo respeitado e compreendido, mesmo se não de todo apreciado.
Coisas da “política dos festivais de cinema)
* * *
The Day He Arrives, de Hong Sangsoo (Coréia
do Sul, 2011) – Un Certain Regard
Depois
de filmes de importância política própria como o de Panahi, ou
de escopo sobre a política e as grandes figuras como os de Schoeller
e Cavalier, nada melhor do que mergulhar em mais uma pequena pérola
dos homens miúdos e seus dilemas mínimos do cada vez mais preciso
Hong Sangsoo. Nenhuma surpresa a ser tida aqui, em linhas gerais:
seus personagens principais trabalham com cinema, vivem em alguns
dias os dilemas típicos das ilusões e desilusões amorosas, sexuais
e afetivas em geral (amizade é sempre um tema importante para
Hong), e principalmente bebem – e bebem muito. No entanto, Hong
é daquela estirpe de gênios que têm a capacidade de fazerem sempre
o mesmo filme, e sempre conseguirem se renovar/nos maravilhar
como se fosse a primeira vez que vemos aquilo tudo – e é o caso
aqui, de novo.
Nesse
sentido, The Day He Arrives é típico e único (ou melhor,
típico até por ser único). Ao mesmo tempo em que é um dos filmes
de Hong mais francamente engraçados (algumas sequências são realmente
hilárias), revela-se ao final um dos mais profundamente tristes,
expondo mais um dos patéticos personagens cineastas que ele tão
bem cria, um homem absolutamente incapaz de se conectar de verdade
ao mundo e às pessoas à sua volta, mas ao mesmo tempo incansável
nas suas tentativas repetidas de conseguir fazê-lo (repetição
é palavra essencial ao filme). Sempre munido de sua mochila, o
personagem parece estar sempre chegando e partindo ao mesmo tempo,
destinado a um trânsito marcado pela ânsia dos encontros e a consciência
trágica de sua transitoriedade. Tudo isso culmina num plano final
absolutamente chocante (mostrando a angústia deste homem frente
ao congelamento), que fecha uma obra precisa e rigorosa de um
cineasta claramente em total domínio e capacidade de síntese (o
filme dura apenas uma hora e 15 minutos), sensação
reforçada pela concentração trazida pelo
uso do preto e branco. Trata-se de alguém que vai buscar e afirmar
que nos pequenos homens é que estão, afinal, os grandes temas.
Maio de 2011
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