in loco - diários de cannes
Precisamos falar desses filmes
por Pedro Butcher

We Need To Talk About Kevin, de Lynne Ramsey (Inglaterra, 2011) – Competição
Polisse, de Maïwenn (França, 2011) - Competição

Os critérios que justificam a escolha de um filme para o Festival de Cannes e o lugar que ele ocupará na seleção oficial (competição, hors concours , mostra Um Certo Olhar ou sessão especial) estão muito longe de ser exclusivamente cinematográficos. Um festival como o de Cannes não precisa só de filmes – precisa, entre outras coisas, de estrelas e, principalmente, de assuntos. Daí a presença maciça dos “grandes temas” na disputa pela Palma de Ouro – os “pequenos temas”, com raras exceções, costumam ficar reservados à mostra Um Certo Olhar. Dois filmes bastante diferentes exibidos nesses primeiros dias da competição cumprem claramente o papel de suprir manchetes de jornal: We Need to Talk Abou Kevin, de Lynne Ramsey, e Polisse, de Maïwenn. Duas experiências bastante problemáticas que lidam, curiosamente, com o abuso de crianças.

O mais problemático deles é, disparado, We Need to Talk About Kevin. Ao descrever o filme como o esforço de uma mulher que tenta superar o trauma de ter um filho assassino, a sinopse só enfatiza um dos aspectos da abordagem de Ramsey. O peso do passado – a infância do futuro matador e seu relacionamento com a mãe, apresentados em flashback – terão um peso ainda maior que o pós-trauma. As coisas se complicam quando sabemos que o crime cometido pelo filho foi um massacre escolar, algo que deixa feridas profundas em toda uma comunidade (não só nas famílias envolvidas) e que escapa a explicações simplistas. Apesar de dissimular esse aspecto, We Need to Talk About Kevin é todo construído em torno da obsessão pela(s) causa(s) do crime. E faz isso de forma bastante perversa e leviana, jogando todo o peso da culpa sobre os ombros da mãe interpretada por Tilda Swinton.

Está certo: acompanhamos tudo de um modo radicalmente subjetivo e específico. O que vemos na tela é, claramente, o ponto de vista da mãe depois do massacre, a partir do momento em que ela passa a ser vítima do banimento social. Talvez, portanto, essa culpa tenha sido, ao menos parcialmente, introjetada pela própria sociedade, que passa a repudiá-la de forma violenta. Mas essa redução, por si só, já é perigosamente simplista. O problema é que nem essa posição subjetiva está muito clara. Ao mesmo tempo em que tudo parece ter origem na profunda rejeição da criança por parte da mãe, o menino é apresentado como uma criatura intrinsicamente má, saída de A Profecia.

De certa forma, We Need to Talk About Kevin é o oposto absoluto de Elefante, que Gus Van Sant fez alguns anos depois do massacre de Columbine e que, em 2003, levou a Palma de Ouro aqui mesmo em Cannes. Se Van Sant optou pelo o raro formato 4x3 (quase quadrado, perto do formato de uma televisão antiga), Ramsey escolheu a tela ampla e retangular. Isso porque ela precisa “expressar”, da forma mais óbvia possível, a distância física entre mãe e filho (os personagens estão, quase sempre ocupando as extremidades da tela retangular). Enquanto Van Sant esvazia o filme de explicações e procura entender a geografia em torno dos assassinos, Ramsey satura seu filme de psicologia e omite completamente o contexto social (a escola não aparece a não ser no momento do massacre, talvez sob o pretexto de que só vemos o ponto de vista da mãe). Por fim, Ramsey abusa do simbolismo das cores ao abusar do vermelho: da tinta que mancha as paredes à geléia, tudo no filme faz alusão ao sangue.

Polisse segundo longa-metragem da atriz francesa Maïwen, é bem mais interessante, mas também um tanto problemático. Casos reais investigados pela polícia francesa dedicada aos crimes contra crianças são recriados, com realismo, por atores. O tom, aqui, é muito semelhante ao de outro filme vencedor da Palma de Ouro de Cannes, Entre os muros da escola (2008) – com a diferença de que este último filmou alunos e professores “de verdade” para retratar o cotidiano de uma instituição social (a escola, no caso) e de que, é claro, os casos narrados são muito mais explosivos, envolvendo estupro e abuso de crianças. Mas Polisse não parece confiar de todo no rico material de que dispõe. Precisa, por exemplo, incluir a personagem de uma fotógrafa, interpretada pela própria diretora. Não bastam as tantas questões levantadas pelo filme; teremos também que “discutir” a questão da representação. Se o desenvolvimento do filme deixa dúvidas quanto às intenções dramáticas da diretora, o final se encarrega de dissipá-las com uma terrível montagem paralela que sela o destino de dois personagens com uma falta de sutileza atroz.

Maio de 2011

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