in loco - diários de cannes
De cineastas e deuses
por Pedro Butcher

Melancholia, de Lars Von Trier (Dinamarca, Suécia, França, Alemanha, 2011) – Competição
The Tree of Life, de Terrence Malick (EUA, 2011) - Competição

Às vezes, por acaso ou não, Cannes seleciona filmes que, colocados lado a lado, acabam dialogando entre si. Este ano, a conversa mais evidente se dá entre The Tree of Life, de Terrence Malick, e Melancholia, de Lars Von Trier. São dois cineastas autorais e de grande ambição, cuja visão de mundo está cada vez mais épica e grandiloquente. Não seria exagero dizer que The Tree of Life e Melancholia mais parecem criações de deuses, e não de homens.

Ambos se ocupam de pequenos dramas familiares, aparentemente triviais, para “ir além”. Ambos recorrem a efeitos digitais e incorporam imagens que abandonam a Terra e chegam ao espaço sideral. E ambos se estruturam como peças musicais: Malick usa vários compositores clássicos e contemporâneos para criar sua “sinfonia da vida”, enquanto Von Trier recorre a Wagner, para embalar sua “sinfonia da morte”. Não por acaso, as projeções dos dois filmes fizeram tremer o Grand Theatre Lumière com seu som de potência e qualidade impecáveis, causando doses de deslumbre e espanto.

Von Trier, no entanto, ainda está bastante preso a um modelo de dramaturgia, enquanto Malick ousa vôos mais abstratos. A fábula apocalíptica do cineasta dinamarquês traz um prólogo – cerca de dez minutos de um espetáculo visual formado por impactantes tableaux vivants em câmera lentíssima – e dois capítulos, cada um deles dedicado às irmãs Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Charlotte Gainsbourg). A visão de mundo de Von Trier, nada otimista, é claro, se expressa pela oposição de caráter entre essas personagens simbólicas: enquanto uma delas, a metódica e certinha Claire, vai se desesperando na medida em que o fim do mundo se aproxima, Justine caminha para uma paz interior. Von Trier parece ter feito o filme para colocar uma frase na boca de Justine, que proclama “saber das coisas” (ou seja, ela é Von Trier): “A Terra é má. Ninguém vai sentir falta dela”, diz a personagem.

The Tree of Life, por sua vez, é a radicalização de elementos que já estavam presentes de forma bem mais tímida em todos os seus filmes anteriores de Malick. Se até pouco tempo o cineasta procurava transmitir sua visão holística alternando uma câmera sensorial, colada aos seus personagens, com planos amplos de paisagem e detalhes microscópicos dessa mesma paisagem, agora ele vê a “natureza” como algo bem mais amplo: nada menos que o universo em si. Como Von Trier, Malick carrega seus personagens de simbolismo. Por usar trechos da Bíblia e citar como epígrafe, o cineasta tem sido acusado de ter feito um filme católico, quando, na verdade, ele faz uma utilização muito mais literária dos textos bíblicos.

Pai e mãe da família do meio-oeste americano dos anos 50 – epicentro da pouca narrativa que há do filme – representam, respectivamente, o “caminho da natureza” (o pai, agressivo e competitivo, que tudo transforma em tristeza) e o “caminho da graça” (a mãe, geradora de vida e felicidade). A família, no entanto, é pretexto para um salto narrativo de ambições espirituais mais profundas do que qualquer outro de seus filmes. Malick faz esse salto como uma grande elegia da vida, que, apesar de não ignorar sua condição destrutiva, é oposta à visão de Von Trier. Se o mundo não acabar antes, o tempo será o melhor juiz para dizer se esses dois filmes estão à altura das ambições de seus criadores.

Maio de 2011

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