in loco - diários de cannes
Midnight in Paris, de Woody Allen
(EUA/Espanha/França, 2011)

por Pedro Butcher

As belas da noite

Discordo de tantos colegas: acredito que Woody Allen está em um de seus melhores momentos. Atingiu um ponto de maturidade em que a escritura dos diálogos, a construção dos personagens e, sobretudo, a expertise da mise en scène garantem interesse sobre qualquer um de seus trabalhos recentes. Allen não é dos grandes, e tem plena consciência disso. “Sou um sujeito com algum talento, mas quando você vê Kurosawa, Fellini e Bergman, fica claro como um cristal que não sou um grande artista como eles”, ele disse, sem falsa modéstia, na coletiva de Cannes. Dentro de sua “mediocridade”, porém, Allen se realiza como um artesão de primeira. Seus filmes trazem uma marca registrada facilmente reconhecível, mas também guardam particularidades que, dependendo dos mais diversos fatores, se desenvolvem de forma mais ou menos bem-sucedida.

Midnight in Paris é todo sustentado por uma boa surpresa muito bem desenvolvida. Todos os elementos que podem revelar essa surpresa foram curiosamente omitidos do primeiro trailer do filme (que se assemelha ao de mais uma comédia romântica estrelada por Owen Wilson e Rachel McAdams). Mesmo o press book distribuído em Cannes faz referências apenas sutis, e até a lista de personagens é discretíssima, porque seria reveladora. (E, portanto, se você não quer saber que surpresa é essa, por favor pare de ler esse texto aqui e só volte a ele depois de ter visto o filme).

O começo de Midnight in Paris é uma variação bastante curiosa em relação aos tradicionais créditos sóbrios de Allen, quase sempre em letra branca sobre fundo preto, ao som de um standard ou variações jazzísticas. Antes deles vemos imagens de Paris: primeiro solares, depois chuvosas, por fim noturnas. É um pouco como Manhattan – mas nem tanto. Allen filma Paris com as cores do outono – tons de marrom, amarelo e vermelho são absolutamente dominantes –, e não, é claro, em preto e branco. Só depois das imagens iniciais entram os créditos à la Woody Allen, sobre um diálogo em off.

As primeiras sequencias do filme são um tanto apavorantes. Wilson e McAdams vivem um casal de noivos hospedado em um hotel de luxo. Eles estão acompanhando os pais dela, em uma viagem de negócios. O noivo escreve roteiros para Hollywood enquanto cultiva um romance ainda inacabado. Os pais da noiva – e, logo veremos, a própria noiva – têm um profundo desprezo pela ambição artística do rapaz. Por acaso, eles encontram um amigo pedante que está por ali para dar uma palestra na Sorbonne. Essa figura, que aparentemente é um alívio cômico, logo começa a pesar sobre o filme (e o personagem) de forma quase insuportável.

Da forma como tudo começa a se desenhar, Allen parece caminhar para o abismo: uma comédia trivial em torno de personagens desagradáveis. Mesmo o protagonista, Gil, parece uma figura um tanto apagada. Mas eis que chega “a grande virada”. A entrada em cena do pseudointelectual é o pretexto definitivo para que Gil se afaste dessa gente para caminhar sozinho pelas ruas de Paris à noite. Perdido, senta-se em uma escadaria para descansar. Soam as badaladas da meia noite e um carro antigo faz a curva. Um grupo de pessoas com roupas de época convidam Gil para entrar no carro. Ele vai. Gil, subitamente, se vê na Paris dos anos 20, cercado por seus ídolos da literatura e das artes. Há muitas gags divertidas garantidas por aqui.

Aos poucos, Gil é cercado de figuras como o casal Zelda e F. Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Gertrud Stein, Buñuel, Dali, etc. Eles travam diálogos deliciosos com o aspirante a escritor, e é curioso como Allen se atreve a fazer graça com seus ídolos sem medo de retratá-los como clichês idealizados. Allen filma a aparição desses personagens com sabedoria. A câmera continua posicionada de forma absolutamente “natural”, sem qualquer ênfase. A surpresa está só nos olhos do jovem escritor americano (e nos nossos olhos). Owen Wilson aqui é uma escalação perfeita, porque não poderia haver ator no mundo mais diferente de Woody Allen – californiano, bronzeado, ingênuo. Mas a entrada em cena mais bonita é a da personagem de Marion Cotillard, um corte simples mas estonteante. Ela não é uma artista, é uma musa.

Midnight in Paris consegue traduzir a paixão de Woody Allen pela cidade de forma absolutamente convincente. Tudo o que soava um tanto forçado em Vicky Christina Barcelona e seu retrato explosivo da cidade e dos espanhóis, aqui parece lógico e orgânico (e não é possível deixar de observar que quase não há franceses nativos em Midnight in Paris...). Allen aqui não quer ser Bergman, como na fase em que decalcou o mestre sueco – aqui ele está ao lado de Lubitsch e, principalmente, de René Clair e seus dois grandes filmes: Sob os Tetos de Paris e As belas da Noite. Mesmo a nostalgia, que poderia dar um tom saudosista ao filme, é subvertida em mais uma “virada” do roteiro. O presente pode ser amargo, mas será sempre o presente. Incontornável.

Maio de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


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