Cantoras do Rádio, de Gil Baroni (Brasil, 2008)
por Eduardo Valente

Tempo, tempo, tempo

Se levamos em conta tão somente a narrativa que Cantoras do Rádio parece querer enunciar, este é um filme-homenagem a um determinado momento da música e da realidade brasileira, encarnado no corpo de quatro cantoras que relembram (no palco e em entrevistas) outras dez, já falecidas, que marcaram de diferentes (mas sempre profundas) maneiras não só o imaginário nacional de um determinado momento histórico, como diretamente a vida destas quatro “sobreviventes”. Podemos acreditar que é apenas este o filme que se nos dá a ver, e que deva ser apreciado de acordo com o quanto consiga, ou não, dar conta da suas bem simples missões: registrar um show realizado por elas num teatro carioca, com direito a bastidores destes à la extra de DVD - e, ao fazer isso, repetir um choroso discurso sobre a memória cultural brasileira.

Há um grande potencial para insatisfação se ficarmos no nível das expectativas (um tanto rasteiras) que estes objetivos nos indicam sobre Cantoras do Rádio. No caso do registro do show pelo simples fato que a filmagem deste, pelo menos na projeção digital que se nos deu a ver no circuito comercial de cinemas, resulta bastante feia – não só porque o show em si, na sua disposição no palco e na platéia, é bastante desinteressante visual (e mesmo musicalmente), mas principalmente porque qualquer apelo a imagens mais abertas do evento resultam em imagens bastante grosseiras. Já no caso do discurso “político” sobre a (falta de) memória, a essa altura do campeonato ele já se tornou um chavão tão grande que parece quase engraçado querer pensá-lo como denúncia particularmente potente. Não é questão aqui de julgar se há ou não nexo em afirmações como “o povo brasileiro não tem memória”, “no Brasil, os artistas são mal tratados depois que o tempo passa”, “se fosse lá fora, nós seríamos patrimônios”, mas simplesmente constatar que, sejam elas verdadeiras ou não, a repetição das mesmas afirmações chorosas nada fará de relevante para mudar este panorama (e, sem querer desviar muito do filme em questão para cair em discussões culturalistas ou de memória, vale dizer que, tanto quanto sejam justificadas, estas afirmações carregam acima de tudo uma enorme carga de platitudes que nem tocam problemáticas bem mais complexas sobre conceitos de nação ou memória).

Ao se apresentar como produto de tão simples ambições, Cantoras do Rádio poderia ser, portanto, facilmente descartado. Mas, é só isso mesmo que vemos na tela? É mesmo a homenagem que fica conosco, junto com a tentativa de capturar e eternizar um momento histórico-cultural e determinadas cantoras (como cismam em repetir e repetir inúmeros entrevistados)? Para sorte do filme e nossa, parece haver o tempo todo um outro fluxo de imagens e sentimentos que ele vai permitindo passar (ainda que um tanto subrepticeamente) pela tela – e que nos comove e nos engaja muito mais. Sim porque, malgrado o desejo aparente de servir como homenagem e eternização de algumas artistas brasileiras, Cantoras do Rádio é muito mais um registro quase cruel, e bastante contundente, da inexorável passagem do tempo.

É verdade que isso se dá em parte pelo simples fato de nos colocar frente a quatro artistas idosas que, apenas por sua presença na tela mediada pelas constantes exibições de fotos de época, já nos remetem o tempo todo ao tema – e tanto mais quando explicitam tentativas de suplantar esta passagem (algo particularmente doloroso, por exemplo, nas imagens de Marlene que, depois de inúmeras plásticas, parece quase uma recriação artificial de um rosto já consumido). Mas há no filme algo que vai muito além da simples evidência física da passagem do tempo – e neste contexto a insistência no discurso da luta contra o esquecimento ganha então uma outra dimensão, muito mais comovente que a afirmação de uma pretensa denúncia sobre o caráter da memória sócio-cultural brasileira. Pois tanto ao repetirem que “o Brasil não dá valor a sua memória cultural” ou ao simplesmente quererem, quase obsessivamente, mostrar para as câmeras os seus troféus, os seus discos, relembrar as vitórias e glórias atingidos em cada pequeno concurso ou emprego buscado, o que claramente estas mulheres parecem estar dizendo, mais e mais, é: “nossas amigas já se foram e sabemos que nosso trajeto neste mundo se aproxima do fim; por favor não esqueçam de nós, senão nada disso terá feito sentido”. E aí, o que era para ser afirmação positiva de uma existência ganha quase sempre um tom melancólico que remete à constatação da inevitabilidade não só da passagem do tempo como, em última instância, da morte.

É nesta tensão entre filme desejado e filme que se dá a ver que Cantoras do Rádio encontra sua maior (ou única) força. E nem importa tanto se o filme realmente não se dá conta disso (já que no nível do discurso, seja nas entrevistas com as cantoras ou na narração do filme em si nunca o assunto “morte” é tematizado diretamente) ou se simplesmente prefere fingir não se dar para poder compor com o projeto oriundo dos objetivos do show original (alegres, positivos, vivos). Quanto mais o filme parece querer dizer "está tudo bem, estamos vivas, produtivas", mais o que ouvimos na cadeira é "o tempo passa, e o faz em direção a um fim". E quanto mais se ignore ou enfrente, mais o tema parece tomar conta do filme – como vemos na apelação a determinados artifícios como as mais que desnecessárias animações; as vinhetas que apresentam cada cantora morta com o uso de arranjos musicais “modernosos”; ou a constrangedora cena, perto do final, em que as cantoras posam e tentam interagir com ipods. É justamente nestes momentos em que mais tentam negar-se como objetos obrigatoriamente atrelados a um passado que filme e personagens se mostram melancolicamente acorrentados a este, ao ponto de precisarem tão desesperadamente negar esta condição mostrando-se de alguma forma em contato com uma contemporaneidade – nada muito diferente, como gesto motivador, das cirurgias plásticas de Marlene. E tudo isso tem, malgrado os problemas todos, algo de muito comovente.

Junho de 2009

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta