ensaios
O Homem e o Mundo
por Lila Foster
Quando vi Cao Guimarães pela primeira vez me surpreendi
porque a imagem que construí do seu corpo era de um homem franzino
e silencioso, como o personagem de A Alma do Osso. A sensação
era de que ele filmava em simbiose com o seu ambiente, escondido
atrás de uma rocha ou uma janela, e seus filmes só pareciam fazer
sentido se a sua figura pudesse assumir a quase invisibilidade
e delicadeza da sua direção. Quando esta imagem se desfez surgiu
um questionamento sobre como ele e, algumas vezes, a sua equipe
(que eu julgava fantasiosamente inexistente) transformavam a interferência
da direção em algo quase invisível, preservando um calmo fluir
do tempo, captando o homem na pureza da sua relação com o mundo.
Perguntei-me como funcionava esta mediação capaz de captar o homem
e o mundo no seu verdadeiro realismo, aquele definido por Bazin
como capaz de “exprimir a significação a um só tempo concreta
e essencial do mundo” (no clássico texto “Ontologia da Imagem
Fotográfica”).
Na verdade, Cao Guimarães é um artista que tem
um olhar extremamente atuante mas não se trata de interferência
através do choque, do questionamento, da própria presença física
do diretor diante da câmera – tudo aquilo que comumente identificamos
como interferência num documentário – mas sim permitindo que as
coisas possam ser sentidas visualmente e sonoramente por mais
tempo pela montagem, ou simplesmente transformadas em sua plasticidade
pela fotografia. Com os personagens parece haver uma atuação indireta
que, a princípio, não cria nenhuma situação para além do simples
ato de filmar. Os inanimados (objetos, espaços, a paisagem, os
interiores das casas, a rua) passam pelo crivo do seu olhar-câmera,
e retornam transformados no seu significado como fonte de poesia
e beleza. Recentemente assisti Andarilho (abertura da Bienal
de São Paulo - foto acima) e Acidente (Mostra Internacional
de Cinema de SP), seus dois mais recentes trabalhos.
Andarilho é o segundo filme da Trilogia
da Solidão (iniciada com A Alma do Osso), e parte da mesma
procura: ir ao encontro daqueles que optam pelo isolamento em
busca do que esta escolha revela de essencial da vida. O fantástico
já começa neste recorte temático e no real (verdadeiro) encontro
com estas pessoas que abdicam da vida que chamaríamos de normal
e decidem viver sozinhas, indo e vindo na beira de uma estrada.
Os personagens são três homens e uma rodovia:
Gaúcho, Nercino, Paulão e a BR-251. O vazio da cena inicial –
um plano da rodovia com cores saturadas, lento e com a trilha
incidental de O Grivo – é invadido pela figura de Gaúcho, primeiro
à distância, metido no meio do mato, depois com um plano próximo
do seu rosto. É este andarilho quem ocupa os primeiros momentos
do filme: sua figura de traços fortes, o seu fumar incessante
e um discurso que une a consciência na loucura, a fala solta sobre
a maldade, o bem, Deus. Pouco fica da sua história de vida ou
o que poderia ter levado àquele lugar, pois não é a gênese do
personagem que tem interesse, e sim o seu falar, gesticular, sua
relação com as coisas.
Isto é reflexo de uma abertura que o filme tem
para a força do acaso, da errância, da descoberta em situação,
de nada que seja prévio ao encontro importando, só o momento e
o que possa surgir disto. Esta abertura circunda o filme com uma
certa magia e interrogação sobre lugares e situações simplesmente
inusitados e belos. O que pensar das imagens maravilhosas (não
só porque belas, mas também surpreendentes), de Gaúcho no meio
de um posto de gasolina destruído e abandonado? A magia é tamanha
que a natureza responde mandando um raio no meio de um dos discursos
metafísicos de Gaúcho sobre as garrafas de plástico e Deus.
Desta
abertura ao acaso, no entanto, não pode ser inferido qualquer
“espontaneísmo”: o diretor e sua equipe acompanham de perto seus
personagens e o seu olhar é sempre atento e multifacetado. Os
formatos de observação variam – por vezes a câmera está muito
longe, e vemos Gaúcho entrando no bar enquanto escutamos o som
próximo (vindo provavelmente de um microfone instalado perto do
seu corpo), outras vezes é a simples observação do velho fazendo
um cigarro. Não é só a captação que importa, mas um o processo
de criação artística no mesmo momento que o diretor está em contato
com os seus personagens.
Nestas variações se percebe o manejo das possibilidades
artísticas do audiovisual: o artista plástico que pensa nos enquadramentos,
tempos e cores e o trabalho posterior com o som – não só na trilha,
mas na força assumida pelos silêncios. Basta ver como o tratamento
da imagem dado à Paulão, um negro forte que está sempre empurrando
o seu carro casa rodovia acima, é diferente da distância com que
se observa Nercino falando sozinho. Um dos planos mais belos:
a estrada com os caminhões passando, o calor do asfalto refletindo
esta imagem como um espelho e Paulão empurrando o seu carro, como
Sísifo empurrando sua pedra morro acima – para depois largá-la
e começar tudo de novo. O que existe de plástico ali é tão inusitado
que nos deixa sempre a pergunta de como a captura de tal imagem
foi possível. Mais uma vez, não há no filme um questionamento
sobre suas motivações: ele é a figura da sobrevivência sem mais,
como mostra o seu carro multi-funcional, onde ele cozinha e guarda
suas coisas, levando a vida um dia após o outro. O sentido da
vida é extrapolado pelos fragmentos destes três andarilhos: loucos,
mas ao mesmo tempo sensatos. Mais do que a pergunta sobre o tipo
de vida que levamos e lutamos tanto para manter, fica a pergunta
sobre os limites da representação, de como nosso pensamento está
moldado por uma série de fórmulas – sobre o documentário, sobre
o outro – que retiram a riqueza do olhar, dos homens e do mundo.
Em
Acidente, o título já diz ao que veio: o acaso é o seu
princípio fundante. Co-dirigido por Pablo Lobato (integrante do
grupo TEIA), os diretores captaram o que desfilava aos olhos enquanto
viajavam por diversas cidades mineiras. São vários capítulos que
levam o nome de cada cidade. O encanto aqui é com os objetos,
as paisagens, o interior das casas, a rua. Não que não existam
situações com personagens – o homossexual e a fala sobre as suas
dificuldades, a mulher que chega em casa sem a chave, o engraxate
e a bêbada que enche o seu saco, as crianças e a procissão – mas
a piração está na poesia, na verdade, no maravilhamento que se
pode retirar de tudo aquilo que não é o homem, mas que carrega
a marca do humano. Não existe separação, na verdade: tudo é fonte
de poesia e diz algo sobre o homem que filma, que olha ou o que
desfila com as pernas gordas embaixo d’água.
Acidente é uma sequência de prazeres que
vem do inusitado. Seja o corte, a duração, o enquadramento, o
lugar da câmera, tudo ali tem um frescor inacreditável. A única
coisa que assisti que chegasse próximo da simplicidade e poder
de captar a essência do mundo foi Five, de Abbas Kiarostami.
Assim como ele, Cao adora a natureza – o movimento da água, das
plantas, da chuva – gerando esta estética natural-fenomenológica
só possível de ser captada pelo vídeo. As possibilidades abertas
por este formato acabam sendo só mais uma dentre as suas ferramentas.
O aparato técnico para esses artistas nunca se impõe como limite,
ele é só como mais uma forma de mediação criativa entre o olhar
e o mundo.
As
mediações podem ser muitas porém o toque de Cao Guimarães é sempre
perceptível. O trabalho de Acidente está bem próximo da
sua série fotográfica Gambiarras: o “jeitinho” inscrustrado
no uso dos objetos. Neste trabalho fotográfico, é também o banal
que assume novas dimensões e adquire um sentido inexistente antes
de ser captado pela objetiva. Objetos que são reconfigurados nas
suas funções ao serem captados pela câmera, têm adicionado o seu
sentido estético; é o prazer da graça de ver transformado o improviso
em arte.
O improviso da viagem, que forma este conjunto
de “acidentes”, se intensifica com a profusão de registros e formatos.
Alguns capítulos-cidade formam pequenas narrativas, como é o caso
da sequência que acompanha o dia de um bar com um observador-câmera
atrás do balcão. O tempo se arrasta e do lado de fora vemos um
ônibus que está sempre lá. A noite cai, o ônibus dá partida e
quando vemos estamos dentro dele compartilhando a visão ampliada
do motorista dirigindo pela cidade. Mini-narrativas convivem com
momentos de pura contemplação, e tudo revela uma outra forma de
se olhar o banal, cercando estas pequenas coisas de um sentido
inédito, mas simples.
É com esta mesma simplicidade que aos poucos a
junção dos nomes das cidades visitadas formam um poema. Os nomes
estavam lá, só precisava alguém aparecer para juntá-los. O trabalho
de Cao Guimarães nos chama a ver as coisas com mais atenção, mostrando
que uma postura poética diante das pessoas e do mundo ainda é
possível. Com isso, ele definitivamente amplia as possibilidades
expressivas do documentário e do audiovisual ao transformar tudo
o que passa pelo seu olhar em poesia.
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