sessão cinética
Capitão Achab (Capitaine Achab),
de Philippe Ramos (França, 2007)
por Juliano Gomes

Viagem ao princípio do mundo

Narrações: essa é a matéria clara de Capitão Achab e sobre ela que o longa de Philippe Ramos versa todo o tempo: o poder de narrar. Para fazer isso, recorre a algumas das maiores narrativas da história do Ocidente: o “Moby Dick”, de Herman Melville; o Antigo Testamento (particularmente, Jonas); e a estrutura da Odisséia, de Homero. Aqui a questão é colocar o cinema em relação a esta milenar atividade.

AchabO vital anacronismo de Ramos já se mostra na sua reafirmação de tradições. Trata-se de colocá-las para serem percebidas e lhes dar nova vida na experiência do filme: o cinema mudo, o relato fantástico, a fábula, a biografia. Coexistem aqui a narração, e sua ligação direta com a experiência humana de ouvir, de reunir-se e compartilhar; e, ao mesmo tempo, a materialidade da narração moderna, factual, do relato objetivo, das grandes descrições, que vão fundar o romance moderno. Esta estrutura híbrida e anacrônica, que vai combinar aspereza e doçura, graça e lacuna, flores e sangue, ossos e pingentes, dá o tom absolutamente singular da obra de Ramos em relação ao seu tempo. Se é impossível inscrevê-lo num gênero específico não é por lhe faltar característica de estilo definido, mas justamente por lhe sobrar. Capitão Achab é um exercício de plena consciência de tradições demarcadas (e fundadoras) das artes narrativas do ocidente. Daí a necessidade de uma temporalidade híbrida e de um tom preciso e demarcado.

É estabelecido o propósito metalingüístico da obra já em seu primeiro momento: uma origem; o corpo da mãe morta. O primeiro elemento de uma série de espelhamentos que o liga até a baleia. O trajeto de Achab não é outro senão o de encontrar um lugar onde possa parar, ou recomeçar, isto é: o princípio. Seu caminho é o movimento, o tempo, sua vida se dá nesse contar, nessa visão de quem conviveu com ele, de quem viu sua imagem, e nos dá a ver sua própria visada, que é a morada verdadeira e natural do personagem. Achab é branco, é tela onde tudo se escreve, se inscreve. Sua opacidade, absolutamente desprovida de profundidade psicológica, é o motor para que se possa apropriar dele. O encanto se espalha para nós espectadores, que não paramos de admirar e nos projetar também sobre essa figura que metaforiza o próprio narrar em busca de si mesmo, que encarna uma falta que é própria da imagem, da palavra, um vazio, uma falta de centro, de “substância verdadeira”, de coisa, que funciona como uma espécie de força propulsora, uma gravidade ao contrário, a partir da falta de massa, que a impele a continuar – como Sherazade, sob o perigo, sob o desejo, de morte.

AchabTal movimento vai em direção à maior das metáforas: o mar. O ponto-mór de condensação de sentidos. Sua única possibilidade, seu destino, trágico, que o herói tem que cumprir. Sua sina, é essa: se apagar. Mergulhar no fundo onde tudo se dilui. E Ramos, com um trabalho extraordinário na utilização de luzes naturais, não pára de encenar sucessivamente aparições e desparições. Tudo se metaforiza mais do que se sucede em Capitão Achab. Sua dimensão de transformação predomina sobre a de sucessão. É o tempo do mito e das musas. Daí suas violentíssimas elipses. Nascimento e desaparecimento vão tomando diversas formas aqui. As gradações de luz e sombra, a mínima passagem de uma nuvem que torna a iluminação da cena vacilante, ganham um caráter épico, sua medida é a do todo e não do específico, do singular, como parece clamar o tempo atual. O que urge é exatamente a criação, com todo o peso e leveza que a palavra carrega. Para criar é preciso, conscientemente ou não, enfrentar esse grande monstro, que nos desafia, mutila e ameaça. É no face a face com ele, sobre sua pele, é levado pelo grande monstro, nessa torrente, que esse nascimento pode se dar.

Tal face a face gera uma rede de espelhamentos que se espalha pela narrativa se estabelece como estrutura. No encontro é onde se dá o contar, seja história de pescador, caçador, padre, dândi ou vagabundo. É justamente neste deparar-se. Achab é a baleia para quem está ao seu lado. É branco. Da tela, do lençol esticado, da mãe, onde o sangue pode escorrer, onde a escuridão há de incidir. Onde a ausência fundadora e propulsora há de imperar. Branco que é o silêncio e o grito da visão. Luz cintilante que o protagonista pega nas mãos ao fim de sua jornada, diante de seu fim, de sua guerra íntima, luz que forma um halo, uterino, celular, cujo retorno permite a Achab um descanso que nunca lhe foi permitido, ao findar de sua série. E Dennis Lavant parece a presença perfeita desse ser carregado de vida e morte, de olhar determinado, pele marcada, robustez de gesto, e fragilidade de estatura. Uma imagem que carrega consigo outras, indefinidamente, que preenche e aumenta as elipses do filme, que dá sangue e carne ao branco da pele e da tela. E que vai encontrar morada no encanto do nosso olhar, a cada sutil mudança de luz, a cada nova íris, nessa cintilação de baleias, sereias, que há milênios não cessa de nos dar sentido, nesse infinito e sedutor jogo de reciprocidades.

Agosto de 2011

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