Cara ou Coroa, de Ugo Giorgetti (Brasil, 2012)
por Andrea Ormond
Alguma
coisa acontece
O escritor José Carlos Oliveira no seu maravilhoso
– e, ainda assim, pior romance – Um Novo Animal na Floresta
(1980) fez um balanço da década de 70 e narrou suas próprias desventuras
com um foragido político, em pleno apartamento do Leblon. Militantes
da “esquerda festiva”, como Carlinhos Oliveira, eram, para aqueles
que precisavam sair de circulação, uma alternativa aos “aparelhos”
e à solução derradeira, o exílio. O filme de Ugo Giorgetti, lembra
bastante este relato autobiográfico do segundo maior cronista
brasileiro – depois de Nelson Rodrigues. A sutileza é que a “festiva”
de Carlinhos rodava entre Antonio's e Degrau, curava porres homéricos
olhando o mar de Ipanema. Já 1971, São Paulo, parece triste e
claustrofóbica, ainda mais no inverno – Giorgetti adora colocar
inverno em seus filmes.
Oposto de Festa (1989), Sábado (1995), até de Boleiros
(1998) e do cinismo de O Príncipe (2002), em Cara ou
Coroa não há graça. O espetáculo é depressivo, como se voltasse
às origens de Jogo Duro (1985). Em tudo, São Paulo. Impressiona
como o diretor olha este espaço, o deseja sem nada conceder ao
universo fora de suas referências e obsessões. Creio até que aquelas
tardes muito geladas, pessoas com cachecol, tremendo, dentro de
pouco tempo restarão apenas na tela e na imaginação de alguns
cariocas deslumbrados. Sim,
os filmes de Giorgetti também são belos porque recriam um démodé
incrível, estando em 71, 95 ou 2012. Quando alguém fala sobre
controle, sobre angústia (um quadro de Muhammad Ali foi chumbado
na parede, a denunciar a opção ideológica dos irmãos protagonistas
como tatuagem indelével), e quando a jornalista de teatro expõe
sua distopia de futuro, tive um acesso de mal estar. Não pelas
cenas, somente pela constatação óbvia de que aquilo já foi motivo
de preocupação. Hoje, ninguém se preocupa com o amanhã, o controle
social e ideológico é dez vezes mais eficaz e dissimulado, a guerra
já foi perdida vinte vezes. O fascismo dos milicos e da esquerda
stalinista era pinto, perto do catálogo que Mark Zuckerberg, Google,
traquitanas tecnológicas por toda parte, organizam de nossos pensamentos
e interesses. Sem tiros, nem fossa. A maior conquista do opressor
é se fazer amar pela ignorância do oprimido.
E o oprimido naquela década, articulado ou frustrado,
foi tanto o grupo Living Theatre – detido em Ouro Preto por causa
de uns baseados – quanto os jovens intelectuais que Cara ou
Coroa, sem enganar ninguém, idealiza. Três irmãos, três desbundes
distintos. A quase hippie, hinduísta (Andrea Tedesco) – o tio
(Otávio Augusto) a chama de macumbeira – nos anos 80 bem poderia
conseguir um cantinho na Vila Madalena e dar palestras sobre alimentação
vegetariana, essa doença infantil da macrobiótica. O diretor de
teatro, jogador compulsivo, João Pedro (Emílio de Mello), lembra
um pouco Nenê Garcia (Cláudio Cunha, Oh! Rebuceteio). Resta
o proto-narrador, Getúlio (José Geraldo Rodrigues), envolvido
na guarda dos perseguidos, junto com a namorada Lilian (Julia
Ianina). Sob tensão, administram um mocó improvisado na casa de
um general reformado (Walmor Chagas), avô de Lilian, enquanto
cuidam da própria vida, circulando pela cidade.
É
a nóia idêntica, sem tirar nem pôr, do romance de José Carlos
Oliveira. “Circular pela cidade” guarda um sentido de experiência
existencialista, que Giorgetti já abusara em O Príncipe
e aqui permanece na toada Alain Leroy de Le Feu Follet. Ninguém
fabrica tiro no peito, nem lê o Great Gatsby, embora respirem
urgência. Urgência e fuga. João Pedro larga a direção da peça
no meio, vai viajar. Getúlio talvez estude engenharia no sul de
Minas. Ex-mulher de João Pedro (Julia Feldens) resolve escrever
novelas pra Globo, no Rio. A história gosta tanto dos personagens
que, consequência do amadurecimento, quer mandá-los embora. Giorgetti
às vezes sonha que o paulistano “exista”, tenha forma e discreto
orgulho, porém se trai neste ato falho do êxodo, da diáspora.
A barra pesada da ditadura em Cara ou Coroa é simples desculpa
para quem pode, dar no pé. Como dava no pé o atônito Gustavo,
de O Príncipe.
Quem permanece, a exemplo do tio taxista – e fonte
financeira para os sobrinhos – termina por abraçar um entusiasmado
conformismo. Paulo Maluf, que saíra da prefeitura em abril daquele
ano, sorri na TV; o homem de classe média devolve o sorriso da
poltrona. Uma vez Maluf disse – creio que no CQC – que Deus vai
absolvê-lo, fez coisas boas pela cidade. Não deixa de ser curiosa
sua aparição no filme: o Minhocão, por exemplo, ajudou a destruir
e brutalizar a São Paulo com que suspira Giorgetti. Se não tivesse
o ritmo um pouco falho, sequências frouxas, Cara ou Coroa manipularia
bonito tantos temas caros ao diretor. Dessa vez fazendo um recorte
histórico, uma anotação documental, o otimismo de Giorgetti em
relação ao passado é cada vez maior. E, paradoxo, o olhar despudoradamente
bairrista cada vez mais universal.
Setembro de 2012
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