ensaios
Carlos Magno: do privado para o político
por Cezar Migliorin

As presenças da casa, do filho e dele próprio poderiam nos levar a crer que Carlos Magno (na foto ao lado, em Kalashnikov) é um documentarista do cotidiano, um artista do íntimo ou de filmes que se fazem como diários filmados. Entretanto, não é na exposição do privado que estas obras se sustentam: apesar deste privado ser a porta de entrada (ou de saída) para um universo, este tem a história, a política e eventualmente a mídia em primeiro plano. A casa, misturada às novas tecnologias digitais, arquivos de textos e discursos históricos, grafismos, cultura pop, música techno, história da arte, etc, faz com que as fronteiras entre o privado e o público se tornem bastante incertas. Os vídeos de Magno apresentam este privado explicitamente conectado com o público; o privado não tem em seus filmes nenhuma homogeneidade, é um espaço combinatório. Entretanto, não é um lugar qualquer. A câmera que freqüenta o big-brother e a agência do banco não freqüenta a minha casa.

Os vídeos assinados por Carlos Magno são marcados por uma necessidade: a impossibilidade de não fazê-los. Esta necessidade, essa urgência, já começa nos vídeos feitos em meados dos anos 90, ainda em VHS, e parece se acentuar com o passar do tempo. Do ano 2000 para cá, seus trabalhos acompanham o crescimento de seu filho, Bruno, percebendo que é a própria relação de pai e filho que se constrói através da produção destas imagens (e, como em outras famílias, a relação passa por uma bola de futebol). A necessidade destes trabalhos passa por esta relação.

O filho de Magno, como ele mesmo diz (“Papai, liga a câmera que eu vou fazer performance”), é um performer que não deixa de ser filho, que atua e interpela o diretor e o pai. Estas duas instâncias não se separam, o que traz para a presença de Bruno (nas fotos abaixo, em três momentos: Imprescindíveis; Kalashnikov; Anticristo) uma suspensão das garantias que o espectador poderia ter em relação a como entender os movimentos que acontecem ali. Quem demanda quem? É o pai que transforma o filho em performer? Sim, mas é também o filho que transforma o pai em realizador, trazendo o acaso e o texto para as imagens. O espectador se encontra nestes limites percebendo as performances e ao mesmo tempo as variáveis distâncias entre pai e filho, entre os poderes, opressões, violências e amores que esta relação comporta.

É desta dupla paixão que os filmes são feitos: invenção do mundo privado (de um filho e de um pai) e invenção de um mundo novo, que passa pelo privado. Transforme a tí próprio que transformarás o mundo? Não! A invenção de mundo de Magno, tanto do privado quanto do coletivo, passa por uma escritura das imagens, por uma complexa articulação entre imagens, sons e textos. Estamos definitivamente distantes aqui de uma verdade, seja do mundo, seja do privado, que apareça nua, como testemunho da realidade. O estranhamento e a riqueza estão em algo tão próprio ao cinema: o entrelaçamento entre o registro maquínico, sobretudo quando este registro compartilha a intimidade e a realidade cotidiana, e uma poética combinatória que é produtora de dessemelhança entre a realidade e a imagem.

É nesta dupla potência que os filmes de Magno se constroem. Suas imagens são ao mesmo tempo afetadas pelo mundo filmado – o filho que não responde à demanda do pai, o co-realizador que pede para parar de filmar, a mãe que fala em off enquanto ele filma o filho, a gagueira de Bruno ao ler a palavra “inconstitucional” – e afetadas por uma escritura que vem acrescentar poesia ao silêncio das imagens nuas, perturbar seus sentidos, fazer-lhes combinar com outros sons e imagens perturbando esse silêncio, tornando, através da imagem, o mundo ora excessivo de sentidos, ora mergulhado no nonsense.

O procedimento clássico da montagem no cinema narrativo de ficção é a construção de um contínuo onde só há descontinuidade – é assim que se faz um raccord. Mas, esta continuidade é preparada na captação e, uma vez estabelecida a relação contínua entre dois planos, a memória da descontinuidade original se perde. É o que nos acostumamos a chamar de montagem transparente, uma montagem sem memória da descontinuidade. Já nos trabalhos de Carlos Magno essa continuidade no descontínuo aparece de maneira distinta.

Em Andrômeda (2005), por exemplo, um close de seu filho em contra-plongée (de cima para baixo) aparece diversas vezes intercalando uma narrativa construída com imagens oníricas e textos que parecem narrar um filme. A imagem do filho é colorida, e nitidamente descontínua em relação às imagens em preto e branco que a sucedem. Entretanto, este artifício de montagem, utilizado com muita freqüência, nos dá a impressão de que as imagens narradas são vistas ou imaginadas pela criança. O que era separado e descontínuo é atravessado por uma composição que os une sem que com isso se abandone a natureza heterogênea das imagens. Em Anticristo (2006, foto abaixo) é a imagem de dois ratos que reagem aos sons do filme, provocando o mesmo efeito. Este tipo de composição tem a força de revelar os fios que unem os objetos do mundo, as pessoas e as coisas, ao mesmo tempo em que faz aparecer a fragilidade destas conexões.

A montagem, nesse sentido, não se constitui como oposição de dois elementos, onde um deles se sobressairá, nem como fusão dialética em que um terceiro elemento (uma síntese) será atingido. O sentido da montagem aqui é de criar um comum, uma linha entre sons, textos e imagens que tenha uma dupla função: a manutenção da potência paratáxica de cada elemento, ou seja, a manutenção do isolamento e a possibilidade de esses elementos manterem a abertura para novas e outras conexões; e a ligação que retira cada elemento de seu isolamento e o coloca em relação, criando um comum – por vezes frágil ou fugidio, mas que produz passagens entre elementos. O que chamei de uma memória da descontinuidade nos filmes de Carlos Magno é justamente essa abertura para o múltiplo das imagens. Ao mesmo tempo em que uma conexão é feita e um contínuo se constitui, essa memória paratáxica mantém aberta uma infinitude de conexões. O lugar do espectador é justamente lidar com o sentido que o filme faz ver na criação de um contínuo e nos sentidos que se abrem na criação deste contínuo – uma vez que todos os outros não foram criados.

Em Anticristo – co-dirigido por Dellani Lima – ouvimos um grande discurso de um dirigente chileno do MIR (Movimento Revolucionário de Esquerda); em Imprescindíveis (2003), Carlos Magno pede ao filho que repita nomes de lideres revolucionários históricos, Marighela, Zapata, Comandante Marcos; em Todo católico é punk (2003) é um peruano que faz um discurso pró-zapatista que termina com a palavra de ordem: “Viva a revolução!”. Os exemplos se sucedem: o realizador parece ter grande crença nos discursos revolucionários que apresenta, mas a sua escritura faz com que estes discursos se percam e escapem de quem os pronuncia e os valoriza.

A forma como os discursos revolucionários se perdem não é irônica nem paródia, eles são rearticulados com o contemporâneo e reaparecem aqui em pequenos ambientes, ditos de maneira às vezes mecânica, ou conectados a imagens com as quais não conseguimos fazer ligações claras. São discursos de massa que reaparecem em uma certa solidão ou com extrema dificuldade de se impor, de recuperar um sentido. Magno está consciente que estes discursos já estão esvaziados e que, se proferidos distantes de uma práxis, são apenas palavras jogadas no ar que evocam uma época. A operação aqui se torna então não a de recuperar o texto de esquerda revolucionária como princípio político, mas de fazer pontes entre esse discurso e os lugares e pessoas onde este devir revolucionário possa ainda operar.

Sem medo dos arquivos, Magno evita dois procedimentos correntes no audiovisual quando do uso destes: o primeiro, mais clássico, entende o arquivo com uma prova de verdade e o utiliza de modo sacralizado, como uma imagem nua, uma imagem que garante a relação de verdade entre o evento e o discurso que sobre ele se faz hoje. Neste caso, a imagem não se apresenta como arte, mas como um testemunho. O segundo faz o sentido contrário ao dizer que o arquivo não pode nada, que ele nada revela sobre o passado e que o passado se apresenta como um irrepresentável. Neste caso, o arquivo aparece como imagem estetizante da obra ou fragmento isolado do acontecimento e da história.

Uma utilização do arquivo faz da montagem, da colocação em relação do passado com o presente, um puro encontro de heterogêneos sem troca, outro que faz desses encontros uma versão consensual, onde os arquivos se dão como explicação acabada do presente. Penso então em uma poética do arquivo. Esta poética do arquivo recupera textos, imagens e nomes históricos e os conecta com novos eventos e outras imagens, sem pretender a totalidade do evento primeiro. O arquivo não é uma parada em um momento histórico, mas uma abertura para suas qualidades combinatórias, criativas – da história e das imagens. Como se os eventos não pudessem ser jogados fora, devendo-se guardar a virtualidade de algo que foi no passado, uma virtualidade do discurso, uma força criadora que surge dos próprios homens e que corre o risco de ser apagada como um todo.  Guarda-se a potência de transformação do presente do acontecimento que transborda o tempo em que foi produzido.

O agenciamento dessas imagens, nesse cinema, se faz político menos porque faz reverência a uma ideologia anti-imperialista da esquerda revolucionária, do que pela forma como procura os devires possíveis nestes discursos – e é com o filho, nas tensões e trocas do privado, que esses devires revolucionários acontecem. Se as identidades desses discursos estavam dadas, aqui elas se perdem sem reivindicar uma nova identidade. Trata-se de uma operação de desidentificação construídas pelo cineasta, que passa pelo privado e que permite a formação de novas formas de se fazer a história (pessoal e coletiva).

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