in loco - cobertura do É Tudo Verdade

Carne Osso, de Caio Cavechini (Brasil, 2011)
por Eduardo Valente

Encolheram o cinema

Uma vez assistido Carne Osso, é um desafio e tanto não se limitar aos mais banais clichês argumentativos que surgem quando sabemos que Caio Cavechini é um membro da equipe do programa Profissão: Repórter da Rede Globo, e que seu filme é produzido pela Repórter Brasil, espécie de ONG que denuncia condições aviltantes de trabalho. Sim, porque o filme traz impresso em cada uma de suas escolhas estilísticas e argumentativas o considerável peso dessas duas palavras: reportagem e denúncia. Não que a elas só estejam associados valores negativos, longe disso: da primeira, o filme demonstra tanto o pendor por fazer uma boa apuração, como a propensão ao “furo”, que aqui se encarna na exibição de algumas imagens bastante raras do trabalho dentro dos frigoríficos brasileiros; já da segunda, traz a mais que necessária disposição para o confronto com algumas práticas absolutamente daninhas e desumanas, tão absurdas quanto é a descoberta de suas minúcias. Por estes dois lados, Carne Osso atinge o resultado que deseja, não resta a menor dúvida disso.

Mas aí entra o tal do cinema, e o tal do documentário – afinal, o filme nos está sendo apresentado na competição do principal festival de cinema documentário do Brasil – e a coisa se complica um pouco. Porque no cinema não existe sucesso quando associado simplesmente a essa idéia de “produtividade” que pode balizar uma reportagem (“atingimos o resultado”): o lugar do cinema, mesmo o mais clássico, é o do inesperado, o do desvio, acima de tudo o da encarnação naquela tela de um universo que, seja por seu maravilhamento ou sua abjeção, nos mova de formas que nem mesmo entendemos. Nada disso está no horizonte dos interesses de Carne Osso, filme que tem uma informação a nos passar, uma realidade a denunciar, e mais nada. Para atingir tal fim, como reportagem que de fato é, necessita de clareza absoluta, de nenhum lugar para a confusão de qualquer tipo – daí o repisar de sensações com uma trilha sonora incessante (que chega ao disparate de criar um “efeito emotivo” quando finalmente se silencia para uma personagem chorar), daí a repetição de informações durante quase toda sua duração (para a reportagem-denúncia, a quantidade é uma qualidade: assim não se pode falar de exceção, mas de situação exemplar), daí os inúmeros gráficos e números na tela.

No fundo, a grande pergunta que sai de Carne Osso é uma de fundo sócio-psicológico: num país onde a TV tem a penetração que possui no Brasil, e onde o cinema (ainda mais o documentário, ainda mais o de festivais) se relaciona com números quase milhares de vezes menores de pessoas, o que faz alguém querer fazer uma denúncia pelo cinema, quando já tem a porta aberta para expor suas reportagens para a maior audiência possível? Aí é que começamos a desconfiar que, por mais inocente e inofensivo que seja, talvez haja mais (ou menos, na verdade) em jogo do que as elogiáveis boas intenções que o projeto exala o tempo todo. E é a este jogo, talvez, que o cinema, este frágil brinquedo frente à pujança da TV, devesse preservar-se um pouco mais dentro daquilo que o torna algo diferente. Não necessariamente melhor, diga-se, mas certamente diferente. E é preciso dizer a algo como este produto que, por mais competente que seja, ele não é um filme de cinema. Questão de dar significados aos termos.

Abril de 2011

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