in loco - cobertura dos festivais
Uma Carta para
Elia (A Letter to Elia),
de Martin Scorsese e Kent Jones (EUA, 2010)
por Paulo Santos Lima
Escritos
(íntimos) sobre cinema
Feito para TV, na série American Masters,
da PBS, estritamente falando Uma Carta para Elia nem deveria
estar numa mostra internacional de cinema. Por outro lado,
é de cinema que fala este documentário de Martin Scorsese.
Indiretamente, sobre o cinema de Elia Kazan e o de Scorsese. Ambos
são citados ao longo do especial, mas a pauta do programa tem
mais a ver com uma confissão de um homem de cinema, Martin
Scorsese. Uma declaração. De amor. Amor a um cineasta. Amor pelo
que essa ligação resultou: um jovem, no caso Martin, resolver
fazer cinema. Scorsese, hoje, é certamente o cineasta norte-americano
mais engajado em recuperar a memória e a atenção a filmes, cinemas
e experiências que compõem a grande história do cinema. Seus filmes
dos últimos anos até vêm sofrendo bastante com essa relação íntima
dele, em reverenciar o que é “grande cinema”, os mestres e tal.
Mas é interessante como essa intimidade de Marty, bem distinta
da “seriedade” científica (e por vezes arrogante) de Peter Bogdanovich,
acaba nos trazendo manifestos bastante bonitos, sinceros, com
ele sempre se colocando junto ao cinema, expondo-se quase ao nível
do folhetim.
A
relação de Scorsese com os filmes de Kazan, e com o próprio cineasta,
por seu respeito e admiração, é irrestrito, escancarado, apaixonado.
Claro que o diretor não deixa de situar seu tema. Saberemos um
tanto sobre Kazan, mas, indesviavelmente, pautado por como Scorsese
o enxerga. Essa seria a máxima do autor de cinema, na definição
mais direta do termo, naquilo que se faz autoral por conter a
visão de mundo do artista. Não é por menos que Scorsese embala
algo que lhe habita as entranhas, com os papéis sempre impactantes
da idéia de autor. Ele começa seu documentário lançando a questão
“Que tipo de pessoa um diretor de cinema tem de ser”. Releiamos
umas duas vezes a pergunta. Está claro: a personalização, ou seja,
o foco naquilo que diz respeito a algo anterior à própria realização,
é o que Scorsese leva em conta.
Kazan, para ele, ascende quando, em 1955, aos
12 anos, Marty teve um impactante encontro com algo que lhe dizia
profundamente respeito, quando assistiu a Vidas Amargas.
Ele conta que foi seguindo o rastro do filme, que ia migrando
para salas de cinema mais distantes. Uma obsessão. Esse é, certamente,
o momento mais forte deste Uma Carta para Elia, porque
a força com a qual Scorsese relata a experiência culmina numa
pequena aula de cinema: Scorsese
nem discute a forma, mas mostra, aponta o dedo para um momento
magnífico deste filme de Kazan, quando James Dean larga o irmão
para a mãe prostituta e sai pelo corredor. A descrição, mesmo
órfã de conceitos mais profundos de cinema, não é fraca, bem redundante:
e a descrição sobre algo mágico do cinema, que vai além da construção
intelectual do cineasta, que é mais um resultado inesperado, transcendental,
do que o gênio criativo deu partida, como um belo tiro de obus
que consegue ir, sabe-se lá por quê, à estratosfera. É lindo,
ainda, como Scorsese relata o que lhe toca em Sindicato de
Ladrões, mas a imagem do corredor é de uma felicidade e escolha
soberbas. Um belo encontro de escolhas entre o Kazan pretendeu
e Scorsese pescou de seu coração.
Scorsese
fala de algo pertinente, sobre como o incidente da delação fez
com que Kazan encontrasse o seu cinema, fazendo seus melhores
filmes. É quando ele coloca algo de sua intimidade, de sua vida,
nos filmes, explica Marty. É a tal visão pura, talvez ingênua,
que ele possui sobre o valor dessa autoria. Scorsese discorre
sobre a vida de Kazan, traçando um perfil psicológico e existencial
para conectá-lo aos filmes. Esta é mais a visão de Scorsese sobre
como era o processo criativo de Elia Kazan do que, talvez, de
fato fosse. Scorsese fala de si próprio, mas não esconde isso.
A declaração de amor, Scorsese torna pública. É sempre assim com
suas explanações sobre o cinema, cuja verdade da experiência
cinematográfica aparece em meio às suas declarações, a essas páginas
escritas de diário pessoal, no qual este diretor não falseia falsas
objetividades.
Ao final, Scorsese, narrador
de seu próprio documentário, desta sua carta humilde, entusiasmada
e apaixonada a Kazan, responde a pergunta que ele lançara no ínicio:
“Sendo ele próprio”. Daqui vem Orson Welles, John Ford, Raoul
Walsh e tantos outros que, da sua vida íntima, sua experiência
no mundo, puderam passar mais dados para lermos suas obras. Scorsese
encontra, como os nouvelle vague, seus mestres. Escancara
a admiração e, sobretudo, a emoção. “Emotion” – é assim que Samuel
Fuller define cinema quando indagado em
Pierrot Le Fou. Ao encontrar Fuller, Scorsese
encontra uma emoção crítica, devota aos grandes cinemas, que morreu
há tempos. Por ser homem cheio de contradições, diretor de postura
controversa, Elia Kazan não poderia ser biografado por outro que
não aquele que reencontra um tough guy como Fuller. Bela
carta, esta que Scorsese escreve para si próprio.
Novembro de 2010
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