As Cartas Psicografadas por Chico Xavier,
de Cristiana Grumbach (Brasil, 2010)

por Ilana Feldman

As Cartas Psicografadas por Chico XavierA imagem como ausência

Se a linguagem é sempre lacunar, testemunho de sua própria ausência, o que dizer de um filme que busca criar, entre a contida precisão e o latente desespero, uma forma para a ausência, uma forma para a falta? O que há de tão imenso em As Cartas Psicografadas... é o fato de que o filme parece nascer não só da falta, mas da deficiência das imagens em dar conta da própria experiência da falta. Não é um filme, portanto, simplesmente, sobre a ausência, mas sobre a imagem que falta ao falar da ausência - ou ainda da imagem como ausência.
Isso não é novo no cinema (nem na teoria, sobretudo a da fotografia), mas, de algum modo, os filmes mais impactantes lidam com essa questão: quando o cinema, por meio daquilo que lhe escapa ou de suas impotências, encontra as potências da vida. Se As Cartas... é um filme sobre a imagem que falta ao falar da falta, por outro lado, ele é um filme sobre a necessária e vital presença da mediação: além das imagens dos vazios e das fotografias dos filhos ausentes que compõem os espaços familiares, mediando muitas vezes, literalmente, as presenças dos pais na imagem e a relação com eles, há as palavras psicografadas pelo Chico Xavier e o modo como elas, nas cartas, são materialmente mostradas: muitas vezes rasuradas, ilegíveis, derramadas.

Por todos os inevitáveis diálogos e filiações ao cinema de Eduardo Coutinho, de quem a diretora foi assistente, muitos certamente lembrarão de Santo Forte - em função do tema (a religiosidade ou a crença), mas também  daquele modo particular de Coutinho filmar espaços vazios (algo que também pontua vários dos filmes posteriores a Santo Forte). Só que se em Santo Forte existe a religião, com seu conjunto de crenças, rituais e relações; em As Cartas..., no lugar da religião bem ou mal instituída, se trata de uma religação - novamente, portanto, de uma mediação. Em Santo Forte havia rituais, e os rituais nomeiam as coisas, dão sentido às experiências. Os rituais simbolizam, fazem a mediação. Mas e quando a As Cartas Psicografadas por Chico Xaviermediação está nas palavras de um outro que está fora da imagem, em seu contra campo? Por sua absoluta precisão e rigor formal, As Cartas... estaria mais próximo de Jogo de Cena do que de Santo Forte, ainda mais se pensarmos na temática permanente da perda, do abandono e da ausência que marca Jogo de Cena. Outra relação com Jogo de Cena, mas também com outros filmes de "depoimentos" do Coutinho, é a forma como o passado se atualiza brutalmente por meio do relato. Pensemos em Jogo de Cena, porque ali Coutinho diz explicitamente, meio sem titubear, para uma das personagens, "presente e passado é a mesma coisa". Em As Cartas..., essa dor da perda que é atualizada como se não existisse intervalo temporal, como se não existisse nem duração nem transformação, é muito impressionante. É brutal.

No filme anterior da diretora, Morro da Conceição, há um momento em que se capta o olhar de uma personagem enquanto ela vai rememorando, como se captasse o próprio percurso da memória se atualizando. Em As Cartas... a memória está toda lá, como que integral. A morte de um filho é um corte que cristaliza uma experiência, como que a suspende, impossibilitando qualquer desgaste. E então passados 10, 20, 30 anos, não há diferença, não há duração. Para uma dor como essas o tempo não existe como medida, como qualificação. Tal como naquele poeminha do Drummond, "Os mortos de sobrecasaca", em que um verme, depois de roer as sobrecasacas indiferentes, as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos, só não roera o "imortal soluço de vida que rebentava /que rebentava daquelas páginas."

As Cartas Psicografadas por Chico XavierE então, como dar forma, falar e mostrar aquilo que, se existe, não é mais? Fazendo a última aproximação com a obra de Eduardo Coutinho, creio que aquilo que era latente em seu cinema em As Cartas... se torna belamente evidente. Como se a imagem, para além de toda a dor daqueles pais, daquelas famílias fissuradas, se submetesse à árdua tarefa de falar de si própria, de sua "ontologia negativa", digamos assim: daquilo que ela não é, de seu limite, e do que jamais vai alcançar. Por outro lado, essa limitação perspectiva da imagem não é o que a reduz, mas justamente o que a torna possível. Querer suprimir a mediação para acessar "as coisas em si", a experiência e a dor "em si mesmas", seria um absurdo comparável a querer suprimir os olhos para ver melhor - e o filme se encerra justamente com aquela que tem dificuldades para ver e ler as palavras psicografadas.

Não deve ser à toa o fato de que o documentário brasileiro contemporâneo tem sido esse espaço privilegiado para a explicitação da negatividade e da solidão fundamental de que parte o sujeito, habitante do mundo da linguagem, porém nunca perfeitamente contido nele. Pensemos, novamente, em Jogo de cena ou em Moscou, também do Coutinho, e nas vidas extraviadas dos personagens de Tchekhov; em Santiago, o solitário e povoado personagem do filme do João Salles; na cidade abandonada numa noite de sábado em Sábado à Noite, de Ivo Lopes Araújo; nas mulheres à espera de seus amores em A falta que Me Faz, da Marília Rocha; na evocação da ausência, também por meio de cartas, em Querida Mãe, de Patrícia Cornils; na teatralização da morte em Terra Deu, Terra Come, de Rodrigo Siqueira.

Talvez o documentário, esse campo "menor" fadado ao "fracasso" de toda contingência, temporalidade e finitude, quando não é totalmente capturado pela otimização do desempenho de seus personagens, possa mesmo colocar em cena, como nenhum outro meio, o negativo da "era da performance" em que vivemos. Estaria a força da enunciação coletiva do documentário brasileiro hoje justamente na partilha da falta, das vidas interrompidas, dos sonhos extraviados, das ausências ritualizadas? Se as imagens são "ontologicamente" fantasmagóricas no sentido de sua relativa não-corrupção, eternidade, ausência presentificada e potência de atualização, elas também o são em seu sentido etimológico, pois fantasma deriva do grego fantasó: tornar visível, fazer aparecer. Distante das fantasmagorias espetaculares, o "êxito" de As cartas... encontra-se presente nesse olhar que não teme fracassos nem fantasmas. Nesse olhar para o qual o limite da imagem, bem como sua ralentada duração, não é uma prisão, mas exatamente sua condição de possibilidade e sua liberdade. Afinal, só há alguma liberdade a partir de alguma restrição.

As Cartas Psicografadas por Chico XavierO primeiro expressivo movimento de câmera do filme - o travelling que, depois de enquadrar uma poltrona vazia, sobe em direção à fotografia afixada na parede do filho ausente - é sutilmente dilacerante. Assim como o são os outros vazios, por vezes encobertos pela leitura das cartas pela voz, serena e firme, da diretora. "A morte é a vida em outra moldura", diz de algum daqueles filhos que se foram. Não poderia haver frase mais precisa. De certa forma, o gesto do filme (seja na versão lançada comercialmente, seja na versão mais longa exibida antes em alguns festivais) é o de criar essa moldura, sustentando suas falas e seus silêncios.

Dezembro de 2010

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