Cartola, de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira (Brasil, 2006)
por Lucas Keese

Filmar o samba

É num contexto de uma profusão recente de cinebiografias, em geral marcadas pelo tom oficioso e por uma nostalgia enlatada (cujo maior expoente foi Vinícius, de Miguel Faria Jr, um dos documentários brasileiros mais vistos da história), que surge Cartola, de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira. Lírio já tinha dado sinais de uma ousadia polêmica em seu segundo longa-ficção, Árido Movie, com um olhar bem diverso em relação às imagens comuns do sertão no cinema. Mas aqui o impacto é outro. Estamos em reino diferente, que, talvez, não seja simplesmente o da "verdade", mas de um regime em que a narrativa opera por diferentes vias. Como um documentário biográfico, Cartola arrisca, e por isso mesmo destaca-se entre seus pares e alcança significados para além de uma mera transposição da celebridade para a prateleira de filme.

Montado em fragmentos (muitas vezes desconexos), buscando conexões inusitadas, o filme vai construindo sua trajetória irregular. No início, um garoto andando de trem, vestido em roupas de época e acompanhado por uma narração over do próprio Cartola sobre sua infância, realiza uma dessas típicas dramatizações que encenam o passado. Mas eis que, mais à frente, alguém dando um depoimento narra um episódio em que Cartola se relacionava com uma mulher casada, e o marido, ao descobrir, resolveu tirar satisfações. Antes do depoimento chegar ao desfecho, há um corte para imagens em preto e branco, com um sujeito entrando num quarto e dirigindo-se desconfiado em direção à cama, quando uma cabeça aparece do lençol: é Oscarito! Largando a encenação do passado, Cartola se apropria de outros filmes para realizar essa função. A partir daí, uma série de cenas de filmes nacionais complementam as imagens de arquivo, em alguns momentos funcionando como criativas intervenções narrativas, em outros, apenas citando a época histórica.

O personagem do filme se expande de Cartola para o samba – ou, ainda mais, para o "filmar o samba". Esse caráter metalinguístico, já evidente pelo uso constante de fragmentos de filmes, adquire um sentido mais preciso nessa questão que é "filmar o samba". Essa é a questão de Nelson Pereira dos Santos em Rio, Zona Norte, cujo sambista, personagem de Grande Otelo, aparece diversas vezes no documentário. É a questão também de Orson Welles, que aparece rápida e discretamente junto com as imagens do carnaval dos anos 40, partes de seu inacabado It´s All True. E é nessa tradição em que se insere Cartola, que filma o samba entendendo que não foi o primeiro nem será o último a fazer isto, se colocando na história das imagens, uma história que permanece em movimento.

É claro que nessa grande colagem podemos encontrar vários problemas, como os dispensáveis depoimentos de intelectuais que elucidam o tema. Mas essa necessidade de deixar as arestas aparentes, explicitando o caráter fragmentário do filme, ilustrado pela animação que forma o nome das pessoas, nos sugere isto: o samba, esses personagens, Cartola, não podem ser apreendidos como algo uno, acabado. Eles são constituídos de partes soltas, muitas vezes contraditórias, lacunas (como o longo momento sem imagens no meio do filme). Não há como dar conta do personagem, não como em Vinícius, que ambiciona ser um grandioso mausoléu audiovisual do artista. Talvez por isso, os realizadores tenham falado na apresentação do filme ser necessário construir um novo olhar.


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