in loco - cobertura dos festivais
Um Casal Perfeito (Un couple parfait),
de Nobuhiro Suwa (França, 2006)
por Cléber Eduardo
Autor reconhecível, obra desconhecida
Vemos na primeira imagem um casal dentro de um táxi em movimento.
A câmera está do lado de fora, fundindo o rosto do homem e da
mulher com o reflexo das nuvens na janela do carro. Não sabemos
ainda nada sobre nenhum dos dois, mas durante esse longo plano
inicial a tensão está plantada e, ao se ver as nuvens carregadas
refletidas no vidro, podemos antever uma crise. A segunda imagem
confirma, ainda sem explicações, essa fratura em andamento: o
casal está no quarto de um hotel e negocia quem vai dormir onde.
Cada um fica em um cômodo, separados por uma porta.. A câmera
mantém-se no cômodo dela, após a porta ser fechada, com ela fora
do quadro: vemos apenas a porta. Sim, apenas a porta – mas essa
imagem, a da porta fechada, é forte para o filme, como se vê a
seguir. Depois de muitos segundos em silêncio, ele entra no recinto,
mas logo sai do quadro. Voltamos a ficar apenas com a porta, sempre
a porta.
Se a princípio o filme parece mais próximo da
mulher, esse plano sem os dois em quadro deixa claro sua imparcialidade.
E assim, em linhas gerais, permanecerá: quase sempre com a câmera
com alguma distância dos atores, fixa, no tripé, recortando os
ambientes, espiando os personagens, expondo suas intimidades com
parcimônia, sem se tornar íntima deles. Homem e mulher, aos poucos,
a conta gotas, revelam-se para nós, mas nunca integralmente. Nada
saberemos do casal para além de não conseguirem conviver com harmonia,
de terem a consciência de um fim se aproximando, de sentirem tanto
afeto quanto intolerância e desprezo com a presença do outro.
Filme cruel em seu desconforto, Um Casal Perfeito é sóbrio
em seu enfoque, seco até, com investimento no tempo das cenas,
no extracampo, quase maneirista nesse rigor conceitual, mas também
cheio de vitalidade no minimalismo, fazendo a proposta estética
ser um caminho para a vida. Dessa forma, em vez de apenas com
a crise da imagem, vê-se seres em crise.
Há
duas maneiras críticas de se lidar com Um Casal Perfeito,
ou com qualquer filme de um "universo personalizado".
Uma delas é formatada pela ignorância das obras anteriores de
Nobuhiro Suwa (foto), o que leva esse seu quinto longa-metragem
(se contarmos com sua parceria com o coreano Seung-wook Moon em
After War) a ser um primeiro ingresso em um mundo ficcional
cheio de assinatura estilística, quase militante de um cinema
do rigor do olhar, do recorte do espaço, do extracampo conceitual
e formalista, do plano-sequência no tripé, da escultura do tempo
cênico. Essas características não nos permite, por ser nosso primeiro
contato com Suwa, contextualizá-las na filmografia do realizador.
Somos impedidos de associar assim a continuidade de seu universo
ficcional com o percurso dele até aqui. Sendo assim, Um Casal
Perfeito é o que é, desconectado de seu posicionamento no
trajeto do autor, restando-nos apenas localizar seu endereço no
cinema contemporâneo e em suas aproximações com outros cineastas,
mais próximos ou mais distantes na cronologia histórica.
E
logo podemos ver com familiaridade algumas de suas opções estilísticas
e sua escolha de substância dramática para tecer o conflito a
ser espiado por sua câmera ao mesmo tempo invasiva e discreta
no contato observacional com o casal de protagonistas. Ele e ela,
franceses radicados em Lisboa, sofrem a consciência da falência
de um casamento e a conseqüente indigestão dessa evidência de
fim de ciclo (15 anos de vida conjugal). Uma seqüência poderia
estar em A Noite, de Antonioni, uma outra em um momento
de Mikio Naruse. Um determinado posicionamento da câmera parece
saído de um filme doméstico de Ozu; a duração de uma cena com
movimentação mínima e pausas entre as palavras não seria estranha
em Café Lumière, de Hou Hsiao Hsien, e a exasperação da
experiência no tempo é amiga dos procedimentos de Os Amantes
Constantes, de Philippe Garrel. Muitas outras vinculações
poderiam ser feitas aqui, e sou perseguido pela presença de Rivette,
mas o mais importante é situar a área de atuação de Nabuhiro Suwa.
E não sem a clareza de que sua estrada está mapeada, o que, por
si só, pode ser contornado com um modo de transitar por ela, de
modo a não se estagnar na fórmula de autor, de arte.
Uma segunda maneira de se relacionar com Um
Casal Perfeito, se conhecermos os três filmes anteriores de
Suwa, é ver se o filme confirma um projeto estético com base bastante
reconhecível, se esgarça-o pela repetição acomodada (como Wes
Anderson), se simula um falso reformismo (como Tsai Ming Liang),
se assume a crise do projeto sem abrir mão dele (como Shyamalan),
ou se revigora-se com um reload sem romper com a matriz
(como Tarantino, Michael Mann). Pelas leituras de críticas de
admiradores e questionadores de Suwa, fica-se sabendo que Um
Casal Perfeito é uma "repetição", sim, das marcas
distintivas do cineasta, que, desde a estréia em 1997 com 2
Duo, vem afirmando sua identidade estética (em M/other,
H Story) como se estivesse vinculado a um dogma: câmera
no tripé, casal em crise, os conflitos levados quase ao nível
do insuportável, a cena estática, o peso do tempo. São elementos
com os quais se constrói uma narrativa tanto aclamada por seu
rigor e por sua ausência de concessão como atacada por supostamente
colocar-se de forma arrogante para o espectador (quando são os
patrulheiros dessa arrogância que relacionam-se com intolerância
com o cinema).
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