O
Sonho de Cassandra (Cassandra’s Dream), de Woody Allen (EUA/Inglaterra/França,
2007) por Paulo Santos Lima Pocket
Woody
Woody Allen é uma grife do cinema. Tal
carimbo engessa uma aproximação com seus filmes – o que, na prática, significa
detectar as mesmas “marcas de expressão autoral” que já foram constatadas há tempos,
e, por conseguinte, julgar o filme por quanto ele porta desses traços identitários.
Isso se faz bastante problema ao passar por cima de outras nuances surgidas numa
produção em série como a que Allen vem fazendo (de um filme por ano), além de
não problematizar o quanto essa produção industrial dilui a experiência cinematográfica
deste diretor. Nessa atual fase inglesa, há pelo menos um dado pouco comentado,
que é reverberação de algo anterior (Um Assaltante Bem Trapalhão, Crimes
e Pecados): o dinheiro. Este é algo presente com força, seja em Match Point,
seja em Scoop, mas sobretudo em O Sonho de Cassandra, no qual uma
inédita pulsação e fluxo de acontecimentos afina o foco justamente para o concreto
monetário. Nem Trapaceiros, fita na qual se retornava
para uma comédia mais de corpo, a algo mais a ver com a primeira direção solo
do cineasta (Um Assaltante Bem Trapalhão – seja pelo humor mais físico,
seja pelo argumento de “filme de assalto”), esta de ações e reações ao nível da
experiência do palpável, Woody Allen deixava de aludir a questões de foro interior
dos personagens (aqui, na relação entre os personagens simplórios de Allen e de
sua cunhada em contraste com a esposa que mergulha fundo na luxúria verde). O
Sonho de Cassandra fica estritamente na superfície das coisas captadas. Não
há, por exemplo, o rosto que remete a algo anterior e interior do protagonista
de Match Point, mas sim presenças atuantes ao nível do factual, das ações
diretas e simples. Se há alguma expressão verbal trazendo algo de dentro, isso
está inserido num registro bastante prosaico – muito mais do que os longos diálogos
de Manhattan ou Annie Hall, por exemplo, cujo centro estava nas
idéias e existencialismo, e no amor selando tudo. Para
sobrevoar a superfície das coisas, Allen adota um ritmo bastante ágil, de mundo
selvagem e contemporâneo, o do frenesi cotidiano dos carros, das compras e da
casa própria. Voltamos, assim, ao dinheiro. No cinema, pode-se abstrair sobre
o amor, os desejos etc, mas o dinheiro aparece na tela através de imagens sólidas,
presenças. Claro, a ganância é uma interioridade, mas ela não é propriamente o
dinheiro, mas sim o desejo por tê-lo. O dinheiro, assim, não é uma abstração,
mas um fato dentro do plano, um dado na imagem, ou a própria imagem. Imagem: mesmo
a onírica, fantástica ou surrealista... ela é a própria superfície de algo, confunde-se
com a própria superfície do plano projetado na tela; a imagem é a pele dela própria.
Os
dois irmãos de O Sonho de Cassandra, sempre na linha de pênalti das finanças,
reparam apenas a superfície de suas vidas, as aparências. Ian (Ewan McGregor)
trabalha no restaurante do pai, mas tem o plano de abrir um hotel nos Estados
Unidos (ou seja, seu projeto é de uma gasosidade total). Terry (Colin Farrell)
é um mecânico que gasta tudo o que ganha com bebidas e jogos. Os manos cooperam,
inclusive com Ian pegando carros de luxo da oficina de Terry e fazendo-se todo
holofotes aos outros. Terry endivida-se para honrar o sonho da esposa, que é o
da casa própria. Ian apaixona-se loucamente por uma atriz que, como boa parte
delas, é ligada sobretudo na purpurina das coisas, e o gamado terá de impressioná-la.
Desesperados, recorrem à ajuda do provedor tio Howard (Tom Wilkinson). Howard
evidencia o desando entre os pais da dupla, a admiração e o ressentimento do lado
mais pobre da família. Não há, aqui, grandes tratados existencialistas
ou psicológicos sobre isso, e será a própria presença do ator Tom Wilkinson, num
rico registro cínico, quem fará presente o mal-estar entre os personagens. É o
titio, também, que criará uma ferida entre os irmãos, ao pedir, em troca de uma
boa mesada, que eles matem um rival. Os questionamentos virão à tona, a culpa
mais que tudo (falou-se, na imprensa, muito sobre Dostoievski, o que não deixa
de ser, aqui, mais uma grife do que algo sanguíneo ao filme), mas jamais alongados,
pois verbalmente externados na mesma cadência com a qual as coisas se sucedem
(em alguns momentos, até meio bressonianamente, senão ao estilo de Chabrol,
que parece, de fato, um belo ponto de acesso para este filme de Allen). Essa pulsação
selvagem já está na primeira seqüência, menos simbólica e mais sintética, quando
os irmãos negociam a compra do tal barco “Cassandra’s Dream”, que engana bem para
a imagem de playboys, inclusive na sua impossibilidade (o “sonho” não nomeia o
objeto de desejo deles à toa). É
bom citar Inácio Araujo, que em resenha para a Folha de S.Paulo bem disse sobre
o problema do filme estar na vontade de Woody Allen, em alguns momentos, querer
fazer algo profundo. Pode ser, mas o estilo de imagens utilizado liquida qualquer
indício de tais intenções. Será, inclusive, na montagem e diálogos rápidos, tudo
meio no calor da experiência “do real”, que virá o cinismo ácido do filme, bastante
crítico com o vazio filosófico humano, com homens reféns de mulher igualmente
reféns de desejos ignóbeis. Difere-se, assim, do cinismo e mordacidade de Crimes
e Pecados, no qual o soco no baço era dado no correr da dramaturgia, com revelações
que surgiam e extrema concentração na performance dos atores e seus textos falados.
Não é inútil comentar, também, que a fase londrina de Woody Allen não parece,
pelo menos ao nível dos filmes na tela, atenta a radiografar sociologicamente
o homem inglês. O próprio dinheiro, presença que denuncia a boçalidade existencial
humana, vem de outros tempos na obra de Allen, o que alarga a alça daquilo que
ele está a focar. Pelo visto, o que há mesmo é um desdobramento de questões que
Allen trata desde há muito, desde a fase bergmaniana, mas sobretudo a partir de
Hannah e suas Irmãs: o ser humano. Esse caráter universal,
sim, faz de Woody Allen um cineasta pretensamente elevado, o que vem a ser um
problema. Mas seria mais arrogante que ele fizesse um estudo sociológico de um
ecossistema que ele desconhece, o da Grã-Bretanha. Assim sendo, nos tropeços que
vem cometendo (qualquer um cometeria, rodando um filme por ano, e basta lembrar
do Clint Eastwood de A Conquista da Honra), a adoção de tal mapa estilístico
para contar essa quase fábula sobre perdição, Caim e Abel ou algo do tipo, torna
O Sonho de Cassandra um belo “trabalho pocket” de um cineasta que andava
bastante desatento à forma e bastante mais preocupação com a coleção ano tal de
sua grife. Maio de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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