in loco - cobertura dos festivais
O
Cavalo de Turim (A Torinól ló), de Béla Tarr
(Hungria/França/Alemanha/Suíça/EUA, 2011)
por Fábio Andrade
Filme
de horror
À primeira vista, a menção a Friedrich Nietzsche
no texto que prologa O Cavalo de Turim pode parecer uma
mera (e bem vinda) gota de ironia e acaso à estranha rotina
de confinamento que tomará todo o resto do filme. Nietzsche
não voltará, e a citação parece ser
usada apenas como impulso para por em movimento uma trama que
poderia, muito bem, dispensá-la. Mas o aceno a Nietzsche
ganha um significado para além do anedótico quando
vemos, pela terceira ou quarta vez, Ohlsdorfer (János Derzsi)
e sua filha (Erika Bók) esmagando, com as mãos,
batatas cozidas que soltam fumaça, no centro de um prato.
Está lá, em A Gaia Ciência: "E
se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua
mais solitária solidão e te dissesse: 'Esta vida,
assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la
ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá
nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e
suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de
grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem
e sequência (...)' Não te lançarias ao chão
e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que
te falasses assim?". Em O Cavalo de Turim, Béla
Tarr dá imagens ao Eterno Retorno - e até mesmo
palavras, em um breve e decisivo encontro com um terceiro personagem,
que traz à mesa termos tão fora de moda e essenciais
quanto Bem e Mal.
Mas
o que parece interessar aqui é menos o paradoxo da repetição,
como em O Feitiço do Tempo, de Harold Ramis, ou
Turning Gate, de Hong Sang-soo, e mais a atmosfera que
pode ser construída a partir dela. Ou seja, importa menos
a repetição de fato, e mais a sensação
de dias e rituais que são condenados à sua própria
rotina. Esse pequeno desvio é o que diferencia uma comédia
de um filme de horror. Pois O Cavalo de Turim trabalha
diretamente - mesmo que isso só se torne claro na segunda
metade do filme - com convenções, estrutura e organização
dramática que saem diretamente do cinema de horror.
Por conta de um evento externo arbitrário, um grupo de
personagens fica trancado dentro de uma casa. Essa irredutível
sinopse poderia ser compartilhada, sem necessidade de grandes
adaptações, com uma série de outros filmes:
O Anjo Exterminador, de Luís Buñuel; Os
Pássaros, de Alfred Hitchcock; A Noite dos Mortos-Vivos,
de George Romero; O Buraco, de Tsai Ming-liang; boa parte
de Eureka, de Shinji Aoyama; Sinais ou Fim
dos Tempos, de M. Night Shyamalan, etc. Mas enquanto Hitchcock,
Romero, Shyamalan e Tsai Ming-liang usam o confinamento como possibilidade
de se trabalhar intensa e expressivamente o fora de quadro, e
a mútua relação entre o dentro e fora, no
filme de Béla Tarr, o fora (representado em grande medida
por um barulho de vento constante e que beira a monotonia, no
artificialismo típico dos desenhos sonoros de Tarr, com
as vozes dubladas e a trilha musical em ostinato, outro recurso
de repetição) serve apenas como moldura para o esmero
do que está, de fato, na casa-cena.
Não
à toa, um dos planos mais fortes de O Cavalo de Turim
fará uma inversão do brilhante plano de abertura
de Damnation (foto), em que um recuo de câmera
reconfigura o estatuto diegético da imagem - em primeiro
momento, um teleférico que toma toda a tela, mas que depois
virá a incluir a moldura da janela, e em seguida o personagem
que vê a imagem do teleférico pela janela. Dessa
vez, a câmera é mantida dentro de casa, fechando
aos poucos na chegada de um grupo de ciganos, do lado de fora
da casa. Mas não é possível "des-ver"
as armações da janela quando elas são retiradas
de quadro; uma vez que foi estabelecido o lugar de onde se olha,
não há truque capaz de reconfigurá-lo. Essa
inversão do movimento deixa às claras uma diferença
de prioridades: aqui, é o fora que será condicionado
e recondicionado pelo dentro. O vento sopra em torno da casa,
mas as roupas secam em um varal estendido no meio da sala. Onde
é aquela casa? Qual é o momento histórico
daquelas personagens? Todas essas perguntas ficarão sem
resposta, mas em momento algum a integridade de existência
daquela casa-cena é colocada sob julgamento. Há
algo de extremamente palpável em sua dura existência,
e essa palpabilidade é seu triunfo e sua condenação.
Em pouco tempo, saberemos da verdade incontornável que
as personagens do filme levarão muito mais tempo para aprender:
não há possibilidade de fuga.
O Cavalo de Turim é, portanto, um filme que privilegia
o mostrar ao sugerir. Mas o que o torna uma obra tão intrigante
é que esse mostrar ganha uma força tremenda - embora
exista, de fato, muito pouco a ser mostrado. As ações
se repetem como os copos d'água que Ohlsdorfer bebe de
um só gole, ocupando a casa como os vários pares
de meias e botas que as personagens vestem e desvestem, camada
por camada, ao longo do filme. E esses detalhes, esses pequenos
gestos que criam toda uma liturgia doméstica, ocupam a
casa como ocupam o filme, e dão-lhe vida - com a capacidade
sinestésica dos planos de invocar cheiros, texturas, "cores"
- mesmo que seja no confronto inevitável com a morte. Béla
Tarr faz um filme de horror bastante atípico (o equivalente
mais próximo talvez seja Jeanne Dielman, 23 Quai du
Commerce, 1080 Bruxelles, embora o filme de Chantal Akerman
seja mais "generoso" com as expectativas dramatúrgicas
do espectador, brindando-lhe com um grand finale que
passa longe de O Cavalo de Turim), pois mais do que uma
suspensão, o que ele faz é estabelecer um ritmo,
uma coreografia de corpos e vazios, de pretos e brancos, de ação
e repouso que esticam o filme como um velho elástico. Até
onde será possível esticá-lo antes que ele
arrebente?
Nas quase duas horas e meia de projeção, os dias se empilham como as meias, a possibilidade de fuga fica cada vez mais distante, os truques da sorte (ou do azar) cada vez mais inexplicáveis, os rostos são lentamente escavados pela espera, e a cada segundo aumenta a certeza de que o motivo que alimenta a espera se torna mais distante e incompreensível. Mas essa meticulosa construção de atmosfera é o que faz com que uma breve conversa à mesa se torne um diálogo filosófico, que um poço seco abra uma janela para a finitude, que a demora de um contraplano que revele o que se passa fora de quadro transforme um olhar em direção à câmera em um pedido de misericórdia, e um simples rosto prostrado à janela se torne uma explosão de fantasmagoria de gelar os ossos. Béla Tarr segue esticando seu cinema, desfiando atmosfera e uma clara sensação de presença em planos cada vez mais impactantes e sufocantes. E, com a força decorrente de seus próprios limites, O Cavalo de Turim se fecha como um filme de horror metalinguístico, onde o suspense e a tensão vêm do temor pela integridade do próprio filme que, contrariando seu próprio jogo de expectativas, corre denso e inquebrantável até o final da projeção.
Setembro de 2011
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