Cidade
dos Homens - O Filme, de Paulo Morelli
(Brasil, 2007) por Eduardo Valente
A
paternidade de um filme Existe em Cidade dos
Homens – o filme algo que vai muito além do realismo buscado na linguagem
urdida por Paulo Morelli e sua equipe, através de seus vários “artifícios de real”.
Há uma “verdade” ali que independe do filme como narrativa, e que é relativa mesmo
à ontologia da imagem cinematográfica. Pois se o filme de fato resulta ser sobre
algo, esse algo certamente é a acumulação da experiência do mundo nestes dois
corpos, de Laranjinha e Acerola. Notando a força que é impressa nestes dois corpos,
o filme inteligentemente opta por tornar o fenômeno destes dois corpos registrados
em imagens ao longo dos anos um dos seus principais focos de atenção – algo que
resulta especialmente marcante, é claro, pela narrativa dos personagens se passar
nessa fase de tamanha mudança física, entre o final da infância e a entrada na
idade adulta (e aqui haveria um curioso paralelo a ser feito entre o trabalho
da série/filme com seus atores e aquele realizado pelos filmes de Harry Potter). Assim,
não é por acaso que entramos em Cidade dos Homens – o filme através de
planos que precedem sua narrativa. Se é fato que aprendemos muito sobre um filme
nos seus primeiros e últimos planos (e sobre estes últimos, falaremos mais adiante),
Cidade dos Homens deixa claro aqui, com estas imagens que não tem qualquer
valor prático como flashbacks narrativamente falando, que confia numa relação
anterior do espectador com a vivência destes corpos – ou seja, na força de uma
“mitologia” pré-existente. E aqui é importante notar como confiar nesta sensação
é fenômeno bastante raro no cinema nacional – mesmo se consideramos exemplares
de “filmes originados em séries” (como A Grande Família ou Os Normais),
vemos que lá o conceito de personagem segue outros modelos de desenvolvimento
narrativo: muito mais próximo das sitcom, não há tanto uma acumulação de
experiências nos corpos e sim as mesmas situações encenadas ad eternum.
Questão de repetição, portanto, e não de evolução, onde a experiência acumulada
é tudo para o filme – e aqui paramos de falar só dos personagens e atores, e falamos
principalmente de como em Cidade dos Homens – o filme, que se coloca desde
sempre como um filho, uma continuação de algo que começa a ser forjado em Palace
II (o curta que deu origem à tudo relacionado com a “mitologia” de Laranjinha
e Acerola), amplia-se em Cidade de Deus (o filme que se tornou fenômeno
e permitiu que se fizesse uma série de TV) e consolida-se com Cidade dos Homens,
a série. De fato: se a paternidade é tema central aqui,
isso parece se dar menos a partir dos dilemas vividos entre os personagens do
que pela relação da obra Cidade dos Homens – O Filme com os seus “antepassados”.
O filme é marcado por um know-how consolidado em várias áreas – no que
aliás, de novo, trata-se de raridade no cinema nacional, eternamente proto-industrial,
e que serve como exemplo de algo a ser demarcado nesta que talvez seja a mais
profícua experiência de relação criativa estabelecida entre produção para TV e
produção para cinema. Por isso mesmo é que quem assistiu a Viva Voz talvez
tenha dificuldades de reconhecer aqui a assinatura de um mesmo diretor, de um
mesmo “olhar para o mundo” (embora talvez fosse útil ver o outro longa assinado
por Morelli, o pouquíssimo visto O Preço da Paz – filme feito por encomenda
de um produtor, realizado com enorme competência e bem pouca alma). De fato, Cidade
dos Homens – o filme desafia o entendimento tradicional da crítica de influência
“autorista”, porque de fato é menos produto de um “autor” e mais de uma acumulação
– e, assim como dificilmente se reconhece o “autor” responsável pela direção dos
episódios da série, aqui também ele se dilui através de uma série de indícios
de continuidade. O
primeiro, e o mais forte deles, com certeza é o trabalho com os atores: por mais
que se fale muito da linguagem de Cidade de Deus quando se retorna ao filme,
temos que lembrar que certamente uma das suas principais fontes de sucesso é o
elenco – um fenômeno de escalação e de atuação. Pois Cidade dos Homens
continua exatamente de onde o filme de Fernando Meirelles e a série de TV haviam
parado: confia no talento exuberante de figuras já reconhecíveis (como, além dos
dois protagonistas, Jonathan Haagensen ou Luciano Vidigal), mas faz questão de
nos apresentar mais um monte de novos rostos/corpos de incrível presença na tela,
como os de Naíma Silva (Camila) e Eduardo BR (Nefasto), mas especialmente um excepcional
Rodrigo dos Santos (acima), como o pai de Laranjinha – numa composição que dá
força a um personagem de resto bastante mal usado pelo esquematismo do roteiro
(a punição ao “traíra Heraldo” é dos piores momentos do filme). Mas, principalmente
(como também já havíamos aprendido com CDD), não é só questão de elenco
principal, mas de ambiente, de entorno: da avó de Laranjinha aos membros do bando
de cada um dos chefes do tráfico, Cidade dos Homens se torna real para
o espectador em cada um dos seus personagens na tela. No
entanto, o desejo por este efeito de real, conseguido com louvor no trabalho do
elenco, quase sufoca o filme no que se refere à sua linguagem de câmera e corte.
Parecendo primar por um desejo de tudo olhar e quase nada parar para ver, o filme
apela para uma câmera cuja inquietude muitas vezes se torna afobação, parecendo
acreditar que o espectador deve ser mantido hipnotizado pela rapidez de cortes
e balanços, e não pelo que é registrado. De novo, o filme se denuncia como produto
de “linha de produção”: a impressão que temos é que cada cena é coberta por vários
ângulos e depois editada por um olhar invisível e “competente”. O que ganha na
chamada agilidade (que até tem sua função num filme que intercala tantas narrativas
quanto este), perde-se em imersão: temos poucos momentos ao lado dos personagens
e seu tempo – e curiosamente, quando isso acontece no filme, são inserts
dos episódios da série da TV (uma conversa entre Laranjinha e Acerola com direito
até a lenta passagem de foco, e o momento em que Acerola segura o filho no colo
pela primeira vez). Não por acaso o filme consegue emocionar mesmo quando finalmente
a história pára de correr (a primeira meia hora tem alguns momentos em que parece
que surgirá uma legenda com os dizeres: “estamos correndo assim para poder apresentar
todas as linhas narrativas”), e respira um pouco – na chegada de Laranjinha à
casa do pai. Ali sim, naquele apartamento, conseguimos nos instalar por algumas
seqüências e absorver a vivência dos personagens. Porém,
onde o filme realmente nos remete a seu antepassado CDD é que, por mais
que por um lado sofra os efeitos deste “cinema de resultados”, em seu excesso
de competência narrativa; e por outro seja bastante questionável em algumas das
suas opções éticas de registro (a primeira seqüência no alto do morro é fotografada
como um comercial de alistamento ao tráfico; as cenas de invasão dos morros em
seu desejo de fazer da realidade um action movie que também glorifica o
marginal como “soldado”), o filme vai encontrar nos pequenos detalhes do seu registro
o segredo do seu sucesso. Para além do já citado elenco, existe enorme repercussão
no espectador da atenção prestada a uma série de signos de um cotidiano, que vão
do traçado dos gatos na fiação elétrica a uma campainha de porta com mau contato,
passando por toda uma geografia de escadarias estreitas e campinhos de futebol
de várzea. Mas, principalmente, há o efeito de catarse de um filme que ousa ficcionalizar
momentos-chave de uma vivência urbana contemporânea, do mais espetacular (como
a tomada da van dentro do túnel) ao mais detalhista. Pois de fato é em
planos como os de Laranjinha e a namorada procurando o corpo do irmão desta numa
pedreira, ou da avó de Laranjinha caminhando desolada e desalojada pelas ruas
do Centro, que Cidade dos Homens encontra seu maior sucesso: registrar
a passagem do tempo pelo corpo de uma cidade, o Rio de Janeiro. E
aí é que falamos do plano final: se os personagens Laranjinha e Acerola e os corpos
de Darlan Cunha e Douglas Silva saem de quadro pela direita, e continuam sua dinâmica
em outro lugar (imaginário ou não), ao fundo o morro da Sinuca ficcional/corpo
real da Favela do Vidigal continuam em cena, lembrando que esse o seu tempo que
continua a passar – e que talvez a catarse pela ficção seja o que pode nos salvar
de sermos engolidos por ele.
Setembro de 2007
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