Cerro do Jarau, de Beto Souza (Brasil, 2005)
por Marcus Mello

Filme árido

Em seu segundo filme, Beto Souza optou por uma operação de risco: ignorando a evidência de que mesmo no Rio Grande do Sul quase ninguém faz a menor idéia do que possa significar o título de seu filme, o diretor não teve medo de assumir suas escolhas e procurou buscar uma conciliação entre o urbano e o rural. De fato, um olhar mais atento nota que a realização deste filme imperfeito traz uma enorme contribuição para uma cinematografia gaúcha ainda cambaleante, e historicamente dividida entre o chamado “cinema de bombachas” (dos pesados dramas regionalistas, praticado por nomes como Sérgio Silva e Henrique de Freitas Lima) e o cinema de temática urbana (do qual Jorge Furtado é a principal expressão).

Cerro do Jarau foi um dos três longas gaúchos que estiveram em competição em Gramado 2005, ao lado de Diário de um Novo Mundo, de Paulo Nascimento, e Sal de Prata, de Carlos Gerbase. A princípio vista como um feito histórico, a sinalizar o vigor da produção cinematográfica no Rio Grande do Sul, esta inédita tripla representação local em Gramado terminou sendo alvo de uma recepção bastante negativa, caracterizada por uma ampla rejeição do público e da crítica. Para os espectadores gaúchos, em particular, a comparação com títulos como Cinema, Aspirinas e Urubus, Crime Delicado ou Cidade Baixa, bem sucedidos representantes de uma safra recente particularmente boa para o cinema brasileiro, provou-se difícil. Vale observar que, até o momento, Cerro do Jarau estreou apenas no Rio Grande do Sul. Mas um futuro lançamento do filme nos cinemas do eixo Rio-São Paulo não deve encontrar públicos muito mais receptivos.

Através da atualização de uma antiga lenda do folclore gaúcho, recuperada pelo escritor Simões Lopes Neto (espécie de Guimarães Rosa sulista), Souza transforma a Salamanca do Jarau (também conhecida como Teiniaguá), uma perigosa devoradora de homens, empenhada em seduzir aqueles de quem se aproxima, para então destruí-los, em típica mulher fatal de filme noir. Insere-a, assim, numa trama que mistura diferentes gêneros cinematográficos (o policial, o filme de estrada, o melodrama, a comédia).

No entanto, apesar do interessante ponto de partida, as muitas falhas de um roteiro apressado (com personagens pouco desenvolvidos, situações inverossímeis e uma súbita e injustificável ausência do protagonista – esquecido pelos roteiristas em um caixão de defunto durante boa parte da história), além da montagem problemática e uma encenação excessivamente convencional, solaparam as possibilidades de um projeto que tinha tudo para conquistar o espectador por sua originalidade. O enigmático incidente com as crianças na gruta, por exemplo, poderia ter seu aproveitamento dramático potencializado (lembremos apenas de dois belos títulos que partiam de uma situação similar, Piquenique na Montanha Misteriosa, de Peter Weir, e Passagem para a Índia, de David Lean), revelando um tratamento tímido em relação a um argumento que exigiria vôos imaginativos mais altos.

Assim sendo, mesmo alguns aspectos positivos do filme não conseguem assegurar a sua sustentação. A direção de arte de Eduardo Antunes tem vários achados (como a casa “pequena por fora e grande por dentro” do personagem Toco) e a fotografia de Roberto Henkin capta a luz do pampa gaúcho com rara sensibilidade. A trilha, assinada por Flu, Edu K e Celau Moreira, é excelente. Há um rendimento seguro por parte do elenco (Lu Adams e Miguel Ramos ganharam prêmios de atuação em Recife e Gramado). Existe, sobretudo, uma sincera ambição autoral nessa tentativa de problematizar as tensões entre o arcaico e o contemporâneo ainda presentes no Rio Grande do Sul, este peculiar estado brasileiro que muitas vezes tem o péssimo hábito de não se reconhecer enquanto tal. Infelizmente, Souza deve enfrentar o fato de que o cinema é uma arte exigente, na qual detalhes e intenções importam bem menos do que os resultados apresentados.

 

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta