in loco - o cinema de chantal akerman

Cinema se faz abrindo a porta de casa
por Cezar Migliorin

Em 2005, a cineasta Chantal Akerman aceita a proposta do produtor Xavier Carniaux de fazer um filme em Israel, sobre Israel. A questão de Akerman neste trabalho está colocada logo na sinopse: “o que podemos perceber de Israel sem cair na dicotomia?”.  Boa pergunta, que se desdobra em outra: “existem imagens possíveis?” Là-Bas, ganhador do Grande Prêmio da Competição Internacional do Festival de Documentário de Marseille, em 2006, é uma forma de provar que não existem imagens possíveis. Para Akerman, não há imagens que possam ser feitas sem que elas sejam dominadas pelos clichês, pelas identidades policialescas – o árabe, o judeu, o palestino, o terrorista. Uma vez que não há imagem possível, não há como se aproximar da complexidade do que acontece em Israel. Là-Bas mantém Israel lá, longe do filme, da cineasta, do espectador.

O filme se resume a imagens fixas feitas da janela de um apartamento alugado pela produção, de onde a cineasta filma os vizinhos sem que eles percebam. São imagens enfadonhas e repetitivas onde se vê no prédio ao lado um movimento na varanda, uma senhora que limpa o cinzeiro ou um casal que rega uma planta. Esporádicos offs trazem Akerman de duas maneiras: ao telefone com a mãe e eventuais amigos, sempre em conversas banais; ou a própria cineasta comentando o filme que faz, o livro complicado que está lendo, etc. Estes sons, apesar de aparecerem no filme como sendo som direto foram colocados posteriormente, conforme revelou a montadora Claire Atherton. O procedimento é interessante, mas, no caso de Là-Bas, ele apenas enfatiza a opção pela passividade em relação a situação em que a omissão é em si uma atitude política e comprometida.

Essa descrença não é nova em Akerman. Em News From Home (1977), a cineasta também exibia imagens quaisquer de Nova York enquanto narrava em um off monocórdio as cartas que recebia de sua mãe; banalidade cotidiana, a compra de sapatos, o casamento da amiga. Mas Là-Bas tem uma questão especifica: Chantal Akerman é uma estrangeira em um país em guerra. Fora isso, há uma história pessoal que é trazida para o filme: a cineasta é judia e quando era pequena seu pai quase foi morar em Israel com a família – “mas a terra era muito árida” e eles foram para a Bélgica. Enquanto ela está em Tel Aviv, um ônibus explode matando e ferindo muitas pessoas. Vemos as imagens banais, os vizinhos. As pessoas ligam e dizem que ela não deve sair de casa; Akerman obedece. Neste turbilhão em que ônibus explodem no meio da cidade e um país ataca e destrói o outro, como reage a cineasta? Como enfrenta esse país, os eventos? Não enfrenta. Talvez seja apenas uma resistência pessoal a uma aparente depressão pessoal jogada na tela sem a força de uma escritura.

Para Akerman, a guerra não é representável. Mas, se não há como fazer imagens de Israel, da política ou da guerra, onde esta impossibilidade se dá, nos eventos ou no cinema? É o evento que não se deixa representar, já que ele excede as possibilidades do filme representá-lo, ou é o cinema que é incapaz, por natureza, de chegar ao evento? Não acredito em nenhuma das duas hipóteses. Nenhum evento, país ou sujeito possui uma forma ideal de aproximação, uma maneira de abordagem que surja dele próprio. Se aproximar de qualquer objeto no cinema é sempre um duplo movimento; afetar – inventar uma forma de escrever, filmar, montar – o objeto (Israel, por exemplo) e se deixar afetar, ter a escritura fílmica tocada pelo que se filma. Como vemos, não é o objeto que impossibilita a imagem. Toda imagem é parcial e incapaz da totalidade, de onde provém a própria potência das imagens. Potência paradoxal; é na impossibilidade de dar conta de uma totalidade do evento que o cineasta salva o evento do desaparecimento. Uma imagem é algo que se arranca do real.

Seria então uma impossibilidade intrínseca ao cinema? Sim, se pensarmos o cinema dentro de um regime clássico, ou seja, submetido a regras de ordenação da representação dos objetos. Dentro deste regime, podemos dizer que para certos eventos qualquer representação é uma reprodução do clichê ou das dicotomias já existentes. Là-Bas opera marcando uma diferença em relação ao cinema clássico, que seria capaz de ver a verdade escondida no objeto. Mas, ao se distanciar das representações ditas verídicas, optam pela impossibilidade. Se relacionar com a guerra entre Israel e Palestina não significa ter que achar um encadeamento racional de causas e efeitos. Akerman sabe disso. Entretanto, no mesmo movimento em que se livra desta armadilha da representação clássica, ela opta pela impossibilidade generalizada. Que mundo resta então ao cinema, se ele nada pode na guerra e na injustiça, e se nas situações-limite não há uma imagem digna de ser feita, mesmo que seja uma imagem indigna?

Se há uma imagem pré-constituída do que se passa hoje em Israel, o que o cinema pode é se relacionar com esta imagem e não se abster em confrontá-la com outras imagens. Como disse Godard, “Existe uma forma de juntar as imagens: quando há dois, há logo três. É o principio da aritmética, é principio do cinema”. Uma imagem neste regime não se apresenta como substituta das imagens e dos clichês já existentes, mas como condição para que se possa começar a pensar, começar a agir. Filmando como se fosse uma câmera de vigilância e, apesar de falar de si, mantendo-se distante do que filma, a cineasta parece acreditar que esta desubjetivação se traduz em neutralidade política, o que é um engano. Porém o cinema não termina ai, não se resume a poder ou não se aproximar de determinados eventos e objetos, não se resume a uma relação estável entre o que se vê e o que se diz. Entre a representação clássica e a impossibilidade de estar com o acontecimento há o cinema mesmo; o cinema que se faz inventado linhas de conexão entre imagens, narrativas e pensamentos. Cinema que se faz abrindo a porta de casa; seja para o mundo entrar, seja para sairmos.

Maio de 2009


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