Chantal
Akerman, de cá, de Gustavo Beck e
Leonardo Luiz Ferreira (Brasil, 2010)
por Juliano Gomes
Uma
tomada de posição
Em um dado momento de Chantal Akerman, de cá,
a cineasta belga diz que seu cinema tem como objetivo uma relação
onde o espectador sinta os segundos passando, onde perceba a passagem
do tempo – ao contrário da experiência que se tem com os filmes
que gostamos, onde, dizemos que não “vimos o tempo passar”. O
filme de Gustavo Beck e Leonardo Luiz Ferreira parece buscar “conferir”
esta idéia, colocá-la à prova, ao armar-se num plano único, fixo,
onde o que se observa ao longo de pouco mais de uma hora é como
o tempo passa naquele corpo que vemos um pouco ao longe. Não necessariamente
o da cineasta Chantal Akerman, mas o de uma mulher de meia idade,
que se senta em uma cadeira numa determinada sala, que bebe água
de tempos em tempos, que gesticula, sorri, faz caretas, piadas,
e fuma um cigarro. É isso que o filme nos dá, a chance de desfrutar
essa presença; distanciada e atenciosa.
A força do filme reside justamente no deslocamento
para cá que ele realiza. Primeiro, o temporal: abre-se
mão da montagem, da criação de sentido pela associação de planos.
Estabelece-se uma conexão com uma linhagem que liga os Lumiére
a Andy Warhol, um cinema de concentração de forças dentro da duração
do plano, de intensificação desse espaço-tempo único, que o trata
como unidade autônoma, que se opõe a toda tradição do cinema de
montagem que à rigor funda o conceito de documentário, com Flaherty
e Grierson. Segundo, o espacial: há aqui dois filmes sendo feitos
ao mesmo tempo. O que está sendo feito lá, fora de quadro,
na sala principal, com técnico de som, produtor, entrevistador
e equipamento de luz, e ao qual a protagonista se dirige. Mas
nós, espectadores, dele só temos pistas: ouvimos o entrevistador,
uma outra pessoa que se preocupa com seu cigarro, com sua água,
um fotógrafo que só conhecemos pelos cliques. Em suma, nessa sala
se faz o filme oficial; neste lugar, a veríamos de perto,
observaríamos suas expressões, veríamos seu melhor ângulo.
Mas,
na verdade, esse é uma espécie de filme dentro do filme, um filme
que não podemos ver. O documentário de Beck e Ferreira é uma espécie
de filme da câmera 2, trata-se justamente de operar um deslocamento
no olhar. Os diretores fazem um filme-dispositivo onde o ângulo
que vemos é o outro. O espectador é colocado em um outro
lugar: não no lugar certo, no lugar da ação, no lugar do documentário.
É um filme de antessala. Para chegar a este personagem é necessário
ir para a sala ao lado, dar um passo atrás para ver melhor. É
preciso estabelecer uma distância do filme, para que aí possa
acontecer o que importa, para que se possa dar acesso à diferença.
Cria-se esse jogo de afastamentos, onde o mostrar menos acaba
por revelar mais, mantendo a opacidade da situação, as grandes
bordas negras da imagem. A maior parte do quadro único de Chantal
Akerman, de cá é de preto. A moldura é maior que cena, uma
moldura de escuridão, a imagem, a cena, é só uma parte, uma janela,
dentro de outra, e assim em diante. Cria-se uma
distância do documentário clássico de entrevista. A estratégia
do “filme em tempo real” se multiplica em relação a esse enquadramento.
O tempo é real, a duração que se passa dentro da cena é
também o tempo que assistimos, nada nos é tirado.
Mas essa ilusão de realidade do “tempo real” é
colocada em cheque na medida em que temos uma personagem absolutamente
consciente de si mesma como parte de uma cena. Chantal rapidamente
nota o jogo, e faz sua performance. Constrói seus tempos, suas
repetições, e nos oferece generosamente um inventário de seus
movimentos, sorrisos, anedotas e expressões. O foco aqui é justamente
este tempo compartilhado, a simultaneidade da inscrição verdadeira.
Enfim: a presença. É simplesmente isso que se oferece em Chantal Akerman,
de cá, com seu preciso jogo de deslocamentos. Uma presença
que cultiva os segredos de seu personagem, que sustenta suas contradições,
que se oferece aos nossos olhos em toda sua superficialidade,
cercada de escuridão por todos os lados. O único corpo que se
oferece como imagem é o de Chantal. Quase não vemos os outros
personagens do filme. Eles estão presentes pelo som. Principalmente
Leonardo Ferreira, com suas pausas absolutamente precisas e dramáticas,
que torna-se uma espécie de antagonista, estabelecendo as regras
do jogo – rapidamente entendidas e aceitas pela cineasta. Um jogo
do tempo que se constitui como um duelo, uma dança, um choque
de ritmos. Ele, com voz pausada, com perguntas abstratas e acadêmicas,
e ela, como a dona da cena, protagonista, esbanjando carisma e
povoando este espaço que não vemos, mas que passa a existir sobre
o preto, e só acumula mais força ao passar do filme. Toda a área
escura vai sendo construída gradativamente pelo som. A personagem
orquestra essa construção aos poucos, como na grande cena das
repetições do copo dágua e na genial cena do cigarro. Chantal
usa toda a tensão do enquadramento para si. Nos mostra que é uma
grande diretora e personagem de suspense, criando, pela nuance
de seus gestos, uma longa de cena de suspense, materializada na
fumaça de seu cigarro, e que termina com chave de ouro com seu
comentário maroto para produtora.
Chantal
Akerman, de cá a principio parece emular as características mais evidentes de grande
parte da obra de Chantal: paredes de madeira como em
Hotel Monterrey, quadro simétrico como
Encontros de Anna, câmera distanciada dos personagens como
A Prisioneira, planos bastante alongados e sensação de
tempo real de Jeanne Dielman, entre vários outros. Mas
o filme de Beck e Ferreira consegue superar a armadilha da mera
imitação de procedimentos criando um retrato que, muito mais do
que “lembrar” os filmes de Akerman pela aparência, coloca em jogo
uma das principais tensões de sua obra: o embate entre enclausuramento
e liberdade, entre a coreografia e a moldura, entre a mecanicidade
e o burlesco, entre esse o movimento e a fixidez (já abordado
aqui na revista em outro texto).
A dimensão de humor, que aparece a partir dessas rígidas margens,
é essencial em
Chantal Akerman, de cá. Há uma
leveza que adensa esse retrato e justifica esse olhar, essa chegada
para cá. Trata-se de um movimento pro lado, nem pra trás
nem pra frente, mas ao lado, na sala ao lado do filme, na sala
ao lado do documentário, ao lado do cinema, onde se pode construir
uma geografia própria de sentidos, que deixe ver estes corpos
e o tempo que passa por eles durante esta uma hora, e toda a graça
que eles comportam. Para isso, é preciso tomar uma posição. É
esse e o grande feito de Gustavo Beck e Leonardo Luiz Ferreira.
Setembro de 2010
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