in loco - o cinema de chantal akerman

Da angústia ao ato
por Lila Foster

A obra da diretora Chantal Akerman (foto) não é das mais fáceis de ser analisada. O primeiro motivo é que o contato entre os seus diversos filmes revela uma série de procedimentos e questões recorrentes: a dificuldade do diálogo, a forte presença de uma história familiar e pessoal marcada pela II Guerra, a dimensão histórica no cotidiano, o belo recorte do espaço e a sua fruição em um tempo expandido, a forte presença dos interiores no que eles têm de pictórico, mas também, de angústia e enclausuramento. O “sistema” Chantal Akerman é, em primeira instância, facilmente reconhecível. Todas essas questões formam uma camada de evidência e, acrescidas da auto-referência de uma diretora que se expõe e assume a dimensão dos sentimentos conectados com a própria vida, nos deixam em um deserto conceitual porque nada nos resta a dizer. Os filmes falam por si, tanto pela recorrência de procedimentos, como pela sinceridade e transparência da realizadora. Ficamos, portanto, no limite da crítica, como se tudo a ser afirmado sobre sua obra fosse uma mera transformação em palavras do que é matéria, aqui no seu sentido físico/biológico e cinematográfico, pois vida e cinema parecem não se separar. As idéias, de tão palpáveis e evidentes, fazem a análise soar redundante.

Se os conceitos podem desnudar muito pouco, fica então a dimensão sentimental e física, causada por filmes extremamente potentes na sua somente aparente imobilidade, inação e esvaziamento. Se os longos planos pedem primeiro paciência, a sua extrapolação temporal nos ensina um movimento que é o da sedimentação. A agitação, no espectador, causada pela demora da ação – não somente nos planos de paisagens e interiores, mas também da sensação de deriva de suas personagens, como em Os Encontros de Anna ou Je Tu Il Elle – pede um tempo para que as coisas se assentem. O sentido só se faz pleno quando vivido no tempo, e não com o tempo, com o desenvolvimento da ação somando momentos que sintetizam uma narrativa ou um discurso. Para o crítico, se as palavras e a busca de sentido podem soar limitadas e limitantes, as idéias devem se assentar em um terreno que obriga uma certa libertação. Se um sistema se impõe à primeira vista, a nossa relação com as palavras e os filmes exigem uma dose de arbitrariedade, quer dizer, precisamos abrir mão do sistema e de qualquer idéia de autoridade do crítico para circularmos em um terreno em que o ponto de partida, a questão que mobiliza a escrita, se assuma nitidamente como o elo entre idéias e filmes: uma obviedade que nem sempre é tão aparente.

Tudo isso pode soar muito pós-moderno, adjetivo recorrentemente vinculado à obra da diretora. Mas a forte presença do sujeito-autor cinematográfico não está em função do esvaziamento, no sentido de uma redução do mundo às reações subjetivas individuais, o que hoje se reveste na máxima “tudo é uma questão de opinião”. Ao se tornar evidente, ao falar de si ou tomar como ponto de partida a sua experiência de vida, Chantal Akerman tece respostas ao seu tempo. O seu cinema não é atemporal, meramente plástico ou “vazio”, ele é preenchido por inquietações sobre o seu momento, seu tempo e lugar, reagindo a e construindo uma visão de mundo consistente, não meramente flutuante.

Dois momentos, dois sistemas

Parto, portanto, de uma sensação que emerge do filme Do Outro Lado, a sensação de que o filme articula um discurso fortemente engajado, uma reação a uma situação-limite de violência muito diferente de seus outros filmes. Este posicionamento claro não parece ser comum na obra da cineasta. A resposta ao seu tempo em Chantal sempre apareceu de forma sub-reptícia e não tão evidente (com exceção talvez de Saute ma Ville). Essa diferença, que ecoa na polêmica entre Chantal e Godard – ela o acusando de anti-semita e ele criticando a sua representação dos mexicanos, habitantes de uma cidade na fronteira com os Estados Unidos -, parece um indício de como se estabelecem as instâncias de engajamento no cinema atual, em comparação com outros momentos da trajetória da cineasta e, porque não, da história. Neste sentido, a comparação entre News From Home (1976) e Do Outro Lado (2002) permite que se identifique diferentes formas de agitação causadas no espectador.

News From Home foi feito quando Chantal Akerman chegou à Nova Iorque. É um olhar que investiga os cantos da cidade, num tempo e num ritmo que não se encaixa com a idéia de frenesi, da cidade como novidade excitante. Existe algo de muito melancólico, principalmente quando a leitura das cartas de sua mãe invade lentamente as imagens do cotidiano da cidade. Chantal dá voz às cartas de sua mãe, mas em nenhum momento dá voz às suas cartas de volta. Ela silencia sobre a chegada à Nova Iorque, mas lança um olhar muito singular para o espaço, observa as pessoas no metrô, a moleza do calor nas ruas e o pequeno movimento do comércio. São planos seqüência e longos travellings que nos deixam a esperar por algo que não vai acontecer. Da Europa, as palavras de sua mãe parecem sufocadas pela ausência da filha e pelo cotidiano: a empresa da família vai mal, os pretendentes que ela sonhava para a filha tocam a sua vida, reforçando a frustração de um sonho não realizado, a preocupação constante com a saúde física e financeira da filha, a ansiedade pela demora nas repostas. Entre os dois cotidianos, ausência do diálogo. A palavra não serve em nenhum momento para explicar. Ela explicita a angústia de um lado somente para lançar a outra angústia numa espécie de vazio.

Não existe uma resposta, uma afirmação a ser tecida, uma confissão a ser feita. O que se constrói é uma forte sensação, que ao final do filme parece nos sufocar tanto quanto as cartas de sua mãe soam sufocantes para a filha. Um sentimento forte, que não é somente de saudade, mas de dependência, de uma ausência e distância dolorida. A dor se constrói pela forma e é ela que dá conta sedimentação do sentimento. A dinâmica do filme nega ao espectador qualquer acomodação: News From Home é um filme difícil. Para o cinema experimental da época, negar essa facilidade era negar também uma relação entre filme e espectador de identificação e imersão, tipo de expectativa realizada e cumprida pelo cinema comercial. O sentimento não se dá de barato, ele exige outra imersão e Chantal Akerman sempre foi declaradamente contra esse empobrecimento levado a cabo pelo cinema mais comercial, que lança mão de formas de fácil mobilização.

Do outro lado, 26 anos depois, Do Outro Lado não trabalha na chave da desconstrução da forma. Ele é bem menos “experimental”, mesmo que os longos planos das paisagens, da geografia do lugar estejam também presentes. Um documentário sobre a vida de mexicanos que vivem numa fronteira que tentam sempre ultrapassar: a barreira que separa dois países, mas também uma vida impossível por causa da pobreza em oposição ao mundo das possibilidades representada pelos Estados Unidos. Mesmo que a cineasta não seja programática, é inevitável pensarmos na proximidade com o 11 de Setembro, e de que maneira o filme se posiciona como resposta. Um marco histórico que rondará a vida de uma geração e que está na fala dos americanos que convivem com o medo da invasão estrangeira mas que são incapazes de perceber o quão conectada está a miséria de um lado e a riqueza do outro.

Não deixa de saltar aos olhos como o filme tem a forte presença da fala. São entrevistas com pessoas que perderam parentes em travessias frustradas (a mais forte delas de uma senhora que perdera um filho), fazendeiros americanos, guardas da fronteira americana e, inclusive, uma forte reação da cineasta. Durante uma entrevista com um guarda de fronteira, que compreende a situação em jogo e recrimina a violência praticada por americanos contra mexicanos que tentam chegar ao pais, ela interrompe: eles agem assim porque nunca souberam o que é a fome.

Imagens de câmeras de vigilância, um código de imediata comunicação sobre a perversidade e utilidade da tecnologia desenvolvida para a guerra, e uma trilha sonora que nitidamente instaura o drama distanciam o documentário do experimentalismo mais desestabilizador da cineasta. Serão códigos, imagens de mobilização mais fáceis de digerir? É aqui então que entra o debate sobre as formas e o seu tempo. Existe uma tendência atualmente de recusa de uma tomada de posição sobre o estado das coisas e que siga, numa imagem um pouco redutora, uma linha reta. No filme existe um problema a ser atacado, denunciado, compreendido ou ouvido. E, mesmo que “todos os lados” tenham voz, o filme não dissolve nada, muito pelo contrario. A angústia que sufoca em Do Outro Lado é muito semelhante à angustia de News From Home. A diferença é que, em Do Outro Lado, ela interfere, justo em um momento em que a não-interferência, ou o temor de discurso engajado, parece ser considerado mais propício.

Maio de 2009


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