in loco - cobertura dos festivais
Chantrapas, de Otar Iosseliani (França/Geórgia, 2010)
por
Pedro Henrique Ferreira
Forasteiro
inútil
Há opções estilísticas de Chantrapas
que, com exceção de diretores específicos,
caíram um tanto em desuso na atualidade: referencialidade
pictórica, frontalidade, rigidez e articialidade da encenação
acompanhado por pans e zooms lentos, distanciamento
da subjetividade de seus personagens e uso de recorrêncas
simbólicas como força expressiva do plano. O grande
mérito de Otar Iosseliani é conseguir utilizá-los
com charme e juventude, afastando-se significativamente de um
possível peso histórico que pode acompanhar recursos
“antiquados”, ou mesmo de um tom reverencial.
Assim, tal qual a cena das crianças roubando quadros e
derrubando um padre numa igreja, Iosseliani leva a cabo um projeto
de heresia e exorcismo.
A narrativa
beira um espelhamento desta situação, e se elabora
na trama tradicional do artista solitário que luta contra
as diversas formas de interferência em sua obra, sejam elas
intervenções políticas (na Geórgia)
ou econômicas (na França). Ora, o tema não
é novo, mas Chantrapas irá filmá-lo
sem estigmas, acompanhando uma figura bem resolvida com seu próprio
drama. Bem ao contrário disto, irá fazê-lo
com bom humor, leveza e compreensão, sem cair em suplícios
ou melancolias. A imagem da censura se torna uma tomada graciosa
do bullying entre um casal de velhos. E o ato de revolta
contra esta censura é mais uma travessura infantil ou uma
ameaça de gangue juvenil do que qualquer outra coisa. É
com este olhar afável que o artista, ainda bancando sua
radicalidade, “desce do pedestal” para o mundo e adota
um tom irônico para com sua própria artisticidade.
A
questão talvez seja tentar compreender melhor a natureza
deste olhar sobre o artista que denomina a si mesmo como “forasteiro
inútil” (definição da palavra russa
“chantrapas”) e enxerga certa nulidade em sua função.
Nicolas (Daro Tarielachvili) não encontra o ambiente adequado
para que sua obra possa florescer. Mesmo que leve tudo com naturalidade,
há até mesmo nesta atitude compreensiva um pouco
de frustração por não encontrar no mundo
um espaço onde possa exercer seu trabalho livremente. Mas
ao mesmo tempo em que dita os rumos de sua figura-central, esta
frustração de artista é ironizada pelo filme.
O universo que Otar Iosseliani monta satiriza o artista em descompasso
com seu mundo ao mesmo tempo em que o abraça, numa mistura
que culmina com as seqüências finais: após desistir
do cinema, Nicolas volta para sua terra natal e vai pescar. Então,
é capturado por uma sereia que o leva, de mãos dadas,
para uma terra distante. A única solução
possível é metafísica.
A grande força
de Chantrapas nasce da aparente contradição
que há entre o conjunto de artifícios do qual se
utiliza e o absurdo das situações que retrata. Frontalidades,
armações pictóricas, cenografias teatrais,
encenações rígidas, simbolismos herméticos,
composições onde o mundo não escapa do limite
do quadro, são todos recursos na maioria das vezes associados
a um ideal de arte “elevado”. Mas este ideal será
justamente dessacralizado com uma graciosidade do olhar sobre
acontecimentos burlescos – um pássaro levando um
bilhete para outro país ou uma briga colegial de velhos
nos fundos de uma festa. O corpo do ator é duro e silencioso,
mas seus gestos são cômicos e transpiram juventude.
Não é necessário assumir para si mesmo um
pouco de inutilidade justamente para conseguir ser mais justo?
Outubro de 2011
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