2em1
Conceitos não fazem
filmes - cineastas sim
Deu a Louca na Chapeuzinho
(Hoodwinked), de Cory Edwards, Todd Edwards e Tony Leech (EUA, 2006);
O Grande Truque (The Prestige), de Christopher Nolan (EUA, 2006)
por Eduardo Valente
Embora a leitura paralela possa parecer a princípio
esdrúxula, fato é que as estruturas narrativas de Deu a Louca
na Chapeuzinho e O Grande Truque se baseiam exatamente
no mesmo conceito: o que vemos não é exatamente o que acontece,
e para compreender plenamente as histórias precisamos reenxergar
as cenas e reavaliar as personagens a partir de novas informações
que nos são dadas pelo desenvolvimento de cada filme. No entanto,
a partir desta premissa (não exatamente nova), os caminhos tomados
pelos filmes são completamente inversos – e curiosamente o que
sobra num, falta no outro, e ambos os filmes se ressentem destas
ausências.
Começando pelo filme de Christopher Nolan, impressiona
desde o começo o seu tom “auto-importante”: tudo no filme é exageradamente
solene, a começar pela imagem “simbólica” que o abre, com uma
narração em off empostada que dá a chave de compreensão
da narrativa – “você está olhando com atenção?”. Nolan parece
claramente ter levado muito a sério as críticas positivas que
seu Batman “sério” recebeu pelo mundo. Com isso, jogou fora todo
e qualquer resquício da boa e velha diversão rasteira que era
o melhor de Amnésia (ainda seu melhor filme), e ficou apenas
com uma reedição do tema (percepção incompleta da realidade que
pede uma explicação) em formato “cinemão” – onde a mise-en-scène
de Nolan confirma o que já tínhamos constatado em Batman Returns:
uma filmagem sem critérios, de todos os ângulos possíveis, coberta
por uma edição rápida, contando com uma teatralidade antiquada
para ganhar “relevância”. É este o “grande truque” de Nolan.
Junto
com a leveza, Nolan joga fora algo nada desprezível: a noção mesmo
de fruição e encanto – isso justamente num filme que quer falar
de “magia”. Só que se o tema está em pauta no filme inteiro, falta
qualquer possibilidade de encantamento na filmagem de Nolan, sempre
sisuda, sempre a serviço da obsessão com o “mistério”. O resultado
é um filme que beira o ridículo, tanto por tudo que não explora,
quanto até dentro das regras que se impõe – afinal, a compreensão
da trama em jogo é absolutamente simples e nada surpreendente
(ao contrário do que tenta vender a propaganda: “assista com atenção,
o final é surpreendente!”). Trata-se, então de um longo (e põe
longo nisso) e doloroso trajeto em que o filme vai desvendando
seus “segredos” passo a passo, até a completa transparência.
O Grande Truque explicita qual a distância
entre um artesão (ainda mais um incompetente) como Christopher
Nolan e um artista como M. Night Shyamalan ou Brian De Palma.
Do segundo, basta lembrar o recente Dália Negra, que, sob
o disfarce de um filme de “mistérios”, joga fora a importância
da transparência e põe em questão a própria possibilidade de esclarecimento
– e faz isso através de uma construção cinematográfica onde cada
plano tem importância central. A comparação procede ainda se pensamos
em Scarlett Johansson – furacão sensual em De Palma, boneca inanimada
no quase assexuado cinema de Nolan.
Já Shyamalan faz filmes que, ao invés de compostos de forma superficial
e arbitrariamente complexa (como nos constantes flashbacks
de O Grande Truque), são filmes simples sobre a necessidade
de seus personagens decifrarem o universo que os cerca. Só que,
de novo, esta simplicidade é atingida através de uma preocupação
com cada componente visual e sonoro colocado em cena – onde não
se pretende uma “surpresa final”, e sim uma jornada comum entre
espectador e personagens. Isso é tudo o que não acontece em O
Grande Truque, onde o espectador não se importa em nenhum
momento por nada que aconteça com os protagonistas, construídos
fria e automaticamente por atores e diretor.
Se o filme de Nolan claramente se leva a sério
demais, o problema em Deu a Louca na Chapeuzinho é inversamente
proporcional. Não que se proponha aqui que um desenho animado
cujas intenções são absolutamente satíricas (e orgulhosamente
“bobas”) se leve a sério, no sentido da sisudez - mesmo que ele
seja, de fato, uma versão do filme de Kurosawa, Rashomon.
A questão é que o filme parece excessivamente satisfeito em alavancar
uma ou outra boa piada, em ser espertamente cool, como
se a partir daí nada mais pudesse fazer. Se exime, por isso mesmo,
de urdir uma narrativa no sentido mais completo do termo, vivendo
de uma sucessão de “grandes idéias”, onde a constante reavaliação
das personagens da fábula da Chapeuzinho Vermelho revela-se pouco
mais do que uma seqüência de “reversões de estereótipos”, que
vão aos poucos se tornando mais ridículos do que engraçados.
Ao
optar por fazer isso, o filme apequena os horizontes que pode
atingir, e se conforma em ser uma mistura de piadas pop à la Shrek
com humor à la Era do Gelo – só que com uma animação computadorizada
especialmente “tosca”. Qual seria a outra opção? Vem à mente a
mistura de humor e narrativa que tanto marca os dois grandes estúdios/criadores
da animação mundial recente –John Lasseter/Pixar e Nick Park/Aardman.
Até é fato que os realizadores de Chapeuzinho nunca se
propõem a fazer algo parecido com os nomes citados, mas não é
por isso que não podemos deixar bem claro o seu alcance limitado.
São, no máximo, bons escritores de piadas e dubladores – e, mesmo
nesta categoria, ainda estão degraus abaixo dos criadores de South
Park ou Simpsons.
Ao fim e ao cabo, O Grande Truque e Deu
a Louca na Chapeuzinho são obras tão preocupadas com seus
“conceitos” (a construção misteriosa e “mágica” no primeiro; a
recontextualização do conto de fadas no segundo), que parecem
quase prescindir da realização mesmo dos filmes para atingir seus
objetivos. Não por acaso parecem tão burocráticos, tão cumpridores
de suas tarefas enfadonhas para ligar, plano a plano, o começo
ao final. Dá até para se imaginar bons filmes feitos a partir
de suas premissas (um Grande Truque que se divertisse e
encantasse um pouco mais; um Chapeuzinho que levasse a
sério as possibilidades de sua comédia), mas os que vemos hoje
em cartaz estão longe de cumprir com esta possibilidade.
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