in loco - cobertura dos festivais Che
(idem), de Steven Soderbergh (Espanha/França/EUA, 2008) por
Paulo Santos Lima A
dialética do apagamento
Ainda
que Che Guevara, grande ícone da luta revolucionária e da resistência contra a
opressão, tenha se tornado já no século 20 um item de consumo banalizado, é espantoso
que sua imagem sirva agora, em 2008, justamente para desmantelar uma idéia de
projeto político, sua grande crença. É o que ocorre em Che,
o filme de Steven Soderbergh, sem que isso indique necessariamente uma postura
adversa do cineasta para o seu objeto biografado, mas sim o fato dele ter sido
rodado num momento histórico em que, já se absorvida a falência dos projetos,
avilta-se um quase “fim da história”, num ceticismo que torna aberrante qualquer
idéia de revolução, mudança e processo político. Che lançado aos leões da arena
romana da história. Não
parece ser uma opção deliberada de Soderbergh, que em entrevista defendeu a perenidade
do símbolo de rebeldia e idealismo de Ernesto Guevara. O próprio distanciamento
adotado pelo diretor (que não deixa de ser uma medida preventiva de um artista
norte-americano que terá, inevitavelmente, o olhar “do outro”) é também um grande
respeito à figura de Che. Por outro lado, esse cuidado quase isonômico que parece
reproduzir sem julgar os acontecimentos e os personagens é enganoso, porque essa
quase isenção documental é puro efeito e acaba por amplificar uma idéia de aula
ministrada por Soderbergh sobre Ernesto Che Guevara e sua vida política. Outro
dado, o mais importante deles, é que houve a complexa opção por realizar dois
filmes distintos para compor o projeto Che
– que a Europa Filmes pretende distribuir, separadamente mesmo, como Che (The
Argentine, no original) e Che - A Guerrilha
(Guerrilla, no original). A parte 2
não funciona como a continuação da primeira, mas sim como segundo elemento de
uma dialética que resulta num outro discurso, suscitando novas percepções: sobretudo
aquela que conclui a falibilidade do projeto guevarista. Há, portanto, um intrincado
processo dialético que não parece nada bobo. Che
(The Argentine) Filmado
em scope, o primeiro Che inicia-se com o plano mostrando a bota militar de Ernesto Guevara,
que dá entrevista a um canal de TV norte-americano, em 1965. Che já é um mito
aqui, e será tratado como tal. Intercalada a essa estadia nos EUA, há os momentos
seminais do engajamento de Che na Revolução Cubana, mostrada num colorido sóbrio,
também referente à caligrafia documental: ele se encontrando com Fidel Castro,
liderando os camponeses voluntários na Sierra Maestra, largando a medicina para
ingressar na vida combatente, de médico a comandante, de argentino a cubano, latino-americano,
por devoção revolucionária. As
batalhas são mostradas com um certo distanciamento, jamais espetacularizadas,
cumprindo um papel na roldana desta parte 1 na medida em que tudo aqui está em
pleno funcionamento e progresso: a empreitada revolucionária, a ideologia de Che
surtindo resultados belíssimos, o posicionamento de Cuba como país subdesenvolvido
que não se curvou à dominação do Primeiro Mundo – enfim, a ação e o discurso juntos
e em vitória plena. O que implica, também, num discurso cinematográfico vigoroso,
em que a montagem se faz exuberante na junção tensa dos planos, a granulação hemorrágica
vazando do PB à cor, em que Benicio Del Toro encarna o personagem de Che de uma
forma selvagem, suicida, entregando seu corpo ao corpo do verdadeiro Che, que
por sua vez lhe rouba nariz, corpo e todo o resto para largá-lo inteiro na vastidão
da janela 2:35. Che
é um cinema do espetáculo (não do espetaculoso), que se quer fazer notar em sua
competência e felicidade nas escolhas estilísticas. É um thriller, também,
mas um “thriller calmo”, pois o escoamento dos acontecimentos é tão sabido
por nós. É quase uma utopia em forma de cinema, em que se trabalha com índices
realistas ao limite do formalismo (é só notar como Soderbergh trabalha as várias
profundidades do quadro, sobretudo nas cenas passadas em Cuba), sem com isso machucar
os olhos, e em que tudo segue como uma grande orquestra, conflitos sendo resolvidos
no calor da cena e seguindo em frente até a vitória. Um filme que é uma grande
aula de Che para todos, cujo discurso, mais que a ação, triunfa e comprova o sucesso
da ação histórica revolucionária. Um filme idealista, espertamente idealizado
por Soderbergh, mas que inspira uma total pureza ideológica que inexiste nesses
nossos tempos céticos. Um filme para cima. Che
– A Guerrilha Usando
a mesma câmera digital 4k, Soderbergh opta, aqui, pela janela 1:85, trocando para
uma imagem anêmica, mais sóbria e descolorida, capturada por uma câmera-na-mão
que se faz mais expressiva, mais que nunca ligada biologicamente ao personagem
de Che. Antes, o filme do sucesso; agora, temos a falência do projeto revolucionário,
com os discursos de Che se perdendo na selva boliviana, sem encontrar o contracampo
da população local, composta de camponeses arredios e dormentes, de integrantes
do PC boliviano que preferem a greve à luta armada e rebeldes que não aceitam
bem a intromissão de um estrangeiro. O filme segue os 324 dias de Guevara na Bolívia,
após se decidir por levar ao Terceiro Mundo, África etc, sua ideologia. O discurso
que antes tinha aval coletivo agora é ridicularizado, pois, esfomeados, os guerrilheiros
preferirão a causa individual, preferindo roubar mantimentos a cedê-los ao grupo. Che
- A Guerrilha é um filme sobre a morte de um ícone, e Che não só entrará clandestinamente
disfarçado na Bolívia como usará outros tantos nomes que não o seu, como forma
de levar à frente um projeto que apresenta várias fissuras. É, sobretudo, um filme
de crise, em que a ideologia se perde e a revolução, em si, é impossível de ser
levada adiante. O estilo acompanha essa falência, assumindo um viés mais observacional
na extensão dos (não)acontecimentos. O clima é de thriller conspiratório,
ou seja, de uma tensão assombrosa, reforçada por uma trilha sonora que inspira
tensão. A troca da exuberância do scope pelo 1:85 é mesmo uma mitigação
da exuberância visual, da imagem espetacular, e com a tal fotografia fica claro
que o andamento do longa será até a dissolvição do corpo da imagem. Sem
os ecos obtidos na primeira parte, Che estará sozinho e a câmera não terá o que
mostrar a não ser ele próprio. Ela, trêmula, já sente quando Che toma um tiro
na perna, antes de ser preso. No cativeiro, alvejado com o primeiro dos tiros
mortais, a imagem perderá o foco (o foco, que na regra cinematográfica é o mandamento
da imagem “correta”) e o som terá seus momentos surdos. Até a morte, teremos essas
imagens agônicas, até que o derradeiro fade surge, ilustrando a morte. Soderbergh,
no tal ímpeto de ser um tanto documental na sua leitura dos diários de campanha
escritos por Guevara, prossegue um pouco mostrando o corpo do falecido num helicóptero,
e com o rosto coberto, anônimo. O rosto, o charuto, a boina, os cabelos e barba
crescendo junto à marca “Che”, os slogans atirados pela boca e rebatendo nos alvos
vitoriosamente, tudo isso cede para um rosto sem nome, mudo e esquálido. Che
- A Guerrilha é de uma sobriedade crepuscular, neste que é talvez dos mais
belos trabalhos visuais de Soderbergh. *
* * Do primeiro plano de Che
ao último de Che - A Guerrilha temos
a despersonalização da figura de Che. Da típica bota militar que salta para o
rosto vigoroso de Guevara, fumando um belo charuto e em potência total, chegamos,
ao final numa imagem de Che, em 1956, com Fidel, indo de navio a Cuba para iniciar
o levante. Quase imberbe, sem os índices da barba, da boina, da vestimenta militar
que o consagraram no imaginário coletivo. Temos, de ponta a outra deste longo
filme duplo de 4h20, um processo de apagamento. Apagamento de um rosto, de uma
causa, de uma ação, de um discurso, de um sujeito, de um povo. Da ação coletiva
e vigorosa, migra-se para uma introspecção forçada que culmina numa espécie de
suicídio, numa autofagia. Mata-se a ação e a imagem. Mata-se
o cinema, portanto? Possivelmente não, pois temos um dragão comendo a própria
cauda e, na junção de ambos os filmes, que inclusive planejavam ser algo mais
distantes, estóicos e quase observacionais sobre a vida política de Ernesto Che
Guevara, acaba se instaurando um drama. Parece que Soderbergh, cineasta controlador
que planeja todos os planos de seus filmes, deixa escapar um outro cinema nascido
dessa dialética de dois longas. Um grande filme – e filme grande – que reencontra
a imagem no longo e triste processo de apagamento das coisas, incontornável e
implacável nos nossos dias, até mesmo para uma figura cinematográfica como a de
Ernesto Che Guevara, que colocaria mesmo qualquer cineasta em apuros. Novembro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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