O Cheiro do Ralo, de Heitor Dhalia (Brasil, 2006)
por Eduardo Valente

Como era cheirosa a minha merda

Se a crítica deste filme fosse escrita por Lourenço, personagem-estrela de O Cheiro do Ralo, interpretado por Selton Mello, certamente ele se resumiria a uma tirada engraçadinha de mau gosto, do tipo “O Cheiro do Ralo fede”; ou teria seu valor de face julgado e vaticinado em uma decisão inclemente, como “Isso para mim não vale nada”. Sorte ou azar do leitor, não é Lourenço quem escreve aqui, então precisaremos nos dar ao trabalho de elaborar um pouco melhor o pensamento.

Se Nina, estréia em longa de Heitor Dhalia, nos mostrava alguma coisa, era o entendimento preciso do que significa a tal da imagem publicitária: nem um pouco uma questão de uma determinada estética, reconhecível por um certo uso de filtros, luzes ou direção de arte; e sim um estatuto de imagem. A imagem publicitária é pura superfície, e não quer nada além de vender o que aquela superfície significa mais diretamente. Sentimentos, quando há, são apenas simulacros que possam ser fácil e diretamente compreendidos, no que eles tenham de mais facilmente copiável e reproduzível – nada mais. Pois bem, O Cheiro do Ralo não deixa qualquer dúvida: Heitor Dhalia é um autor de cinema, no sentido que a expressão tem de um cineasta com coerência na sua obra.

Substituindo a esquizofrênica protagonista do primeiro filme, vem o esquizofrênico protagonista deste, em quem o filme aposta todas as suas fichas. Supostamente um escroto assumido, Lourenço é de fato a personificação cinematográfica perfeita de Selton Mello. O carisma do ator é totalmente passado para o personagem, e com isso o filme perde de saída todo o sentido: é impossível não gostar de Lourenço. Podemos até achar que ele é um pouco excessivo, mas ele é tão incrivelmente cool enquanto comete suas insanidades, que não podemos deixar de admirá-lo. Como Dhalia não deixa de esclarecer, os paradigmas aqui são os personagens de um James Ellroy, de um Raymond Chandler. Na verdade, o paradigma maior do cinema de Dhalia (e de Selton Mello, como qualquer olhada na parte ficcional de seu programa Tarja Preta não deixa mentir) é, sem dúvida, o de Quentin Tarantino. Só que, como não poderia deixar de ser num cinema epitelial, não se trata aqui do Quentin Tarantino de verdade, aquele que constrói com o lixo do pop uma mitologia na qual acredita piamente, profundamente humana; e sim o Tarantino da superfície, aquele dos diálogos espertos, hiper-violência e citações constantes. O perigo do talento de Tarantino é este: parecendo fórmula fácil, não deixa perceber a maestria necessária na sua dosagem, e o copiador, ao tentar usar do vazio aparente para falar profundamente, acaba apenas mergulhando num vazio completo, este sim profundo.

Claro, pode-se gargalhar dos esquetes cômicos e diálogos snappy do filme, porque afinal pode-se rir de uma propaganda sem que precise de muito esforço (a das pizzas da Petrobrás antes dos filmes é muito boa, por exemplo). Só que o acúmulo das seguidas “sacadas” do filme não adquire qualquer peso, ao contrário do que parece ser a intenção do filme, que não se dá conta de que, querendo “amenizar” o assunto da obra original de Lourenço Mutarelli, esvazia completamente o sentido dela. E não, não importa que Mutarelli adore a adaptação ou que atue (bem, inclusive) no filme: isso não torna o estupro nem um pouco mais sutil do que era o ataque a Dostoievski em Nina. Para pegar o mote do filme, O Cheiro do Ralo simula um mergulho na merda, só que a merda aqui é de mentirinha e cheirosinha, embalada com um cuidado impecável. O sofrimento do mundo, que supostamente assola seus personagens, é apenas uma imagem fácil e vazia de sentido: publicidade pura.


editoria@revistacinetica.com.br


« Volta