sessão cinética
A Cicatriz Interior (La cicatrice intérieure),
de Philippe Garrel (França, 1972)
por Luiz Soares Júnior

O luto cai bem a Nico

"A grande força de Garrel está em ele retomar uma idéia capital e maior do cinema: seu vampirismo. A imagem (a câmera) vampiriza o real. Em Garrel, esta vampirização se dá ao nível da película. É a matéria película que vampiriza".
Entrevista com Jean Douchet, O cinema autofágico de Philippe Garrel

A Cicatriz InteriorFilme errante sobre a errância, travessia sonâmbula da noite branca: só a tautologia, esta figura retórica que designa a redundância do ser e do logos que o exprime, pode dar conta da vertiginosa celebração do invisível e do vazio a que nos convidam os "transeuntes" personagens de A Cicatriz Interior: uma Nico mais gutural e enlutada do que nunca, hierática como uma personagem elisabetana exilada contra a vastidão da Hubrys; Pierre Clémenti, entre Adão e Prometeu, fecundando um novo mundo ao entregar a tocha à criança; e um filho Peter Pan, que ora se desvanece no rastro da Mãe, ora se concentra e cristaliza no regaço dos elementos.

Como nos melhores filmes de Garrel - L'nfant secret, Elle a passé tant d'heures sous les sunlights, O Nascimento do Amor - A Cicatriz Interior é uma errância circunscrita pelo perímetro de um romance das origens, endêmica reiteração dos mesmos ogros e fadas, dos mesmos brancos esmaltados e corpos escarpados de luz, da mesma Trindade desgarrada e por reconstituir: um Pai, uma Mãe e a criança, arcanjo telúrico, meio de contato entre dois mundos, duas experiências extáticas. O Negro, o Branco, o Calor, o Frio, a Autofagia masoquista de Nico, a Dispersão hedonista do desbravador Clémenti. "A cicatriz interior é um filme sobre o fogo e o gelo. (...) A idéia do quente, do ardente, do febril, do intenso, reforça a característica básica de um universo gelado" (Douchet). 

Como todos os filmes de Garrel, A Cicatriz é um home movie sobre ruptura e reconciliação-ruptura, mas transposto para o universo litúrgico das grandes construções míticas e demiúrgicas (Parsifal, Pentesiléia); a condensação e  o deslocamento, mecanismos constituintes do processo de significação do sonho segundo Freud, são o meio alquímico que permite a Garrel esta síntese entre o lírico e o mítico, o banal e o majestoso, as atribulações matrimoniais e a gestação de um cosmo. Assim, a longa e dolorosa trajetória de separação de um casal é figurada em uma única imagem recorrente (condensação), a dos travellings circulares, percorridos por Nico e Garrel (num curioso travesti de dandy keatoniano) com a obstinação taciturna de um exorcismo centrípeto do passado; e as figuras parentais deste folhetim familiar - Mãe, Pai, Filho, o Novo Pai - recuam para o fora de campo, e são substituídos em cena por arquétipos de um melodrama originário, que busca na soberania dos elementos - Fogo, Água, Terra - e no tempo stacatto das sequências uma espécie de sublimação dos estigmas do trauma e da obsessão, das ruínas que toda demolição existencial e afetiva deixa atrás de si.

Em A Cicatriz Interior, reminiscências viram efígies; crises histéricas de TPM amorosa, solilóquios de Ésquilo, dueto sala e cozinha scherzi camerísticos a  três vozes: Garrel recupera para o cinema, a última das artes, aquele assombro cultual que a primeira - o teatro - um dia possuiu, e que nasceu pela analogia, estabelecida no imaginário por meio de suas origens miméticas, entre o homem e o mundo, a obra e o cosmo, o artista e o sacerdote. Esta propriedade divinatória reconquistada para a arte - não só por Garrel, como por muitos artistas da contracultura, inclusive os cineastas do grupo Zanzibar, ao qual este pertencia à época (Cicatriz daria um belo programa duplo com Heráclito de Deval) - tem na contrapuntística equação entre Gesto, voz e Posição (no enquadramento) o cadinho que assinala a performance como centro da mise en scène; e o corpo, ontem templo, hoje tela, é também no cinema o contracampo da paisagem, este grande Outro, a ser integrado ao universo humano pelo ritual.

A Cicatriz InteriorDisse mais acima sublimação, porque o território no qual estamos é, evidentemente, o do sublime, aquela demoníaca dimensão do real que, segundo Kant, o sujeito não pode apreender perceptivamente (leia-se: dominar), e que nesta "brochada" o libera para uma espécie de orgasmo da contemplação, um Nirvana da visão; o sublime, deve-se ressaltar, não pode ser confundido com o belo. Lyotard, com a elegância habitual: "O sublime (...) é um prazer misturado com medo, um prazer que advém do medo. Medo diante da presença de um objeto absolutamente maior - um deserto, uma montanha, uma pirâmide - ou de um que se nos afigure absolutamente poderoso - um vulcão em erupção, uma tempestade no mar -,  e que, como todo Absoluto, pode apenas ser pensado, sem nenhuma intuição sensível correspondente pois, como uma Idéia da Razão, (...) a imaginação falha em providenciar uma representação correspondente a este tipo de Idéia. Este déficit na expressão dá origem a um terror, uma espécie de clivagem no sujeito entre o que o que pode ser concebido e o que pode ser imaginado ou representado. Mas este medo engendra em conseqüência um prazer, um duplo prazer: (...) este deslocamento das faculdades (da imaginação e da razão) dá origem a uma extrema tensão (Kant chama isso de agitação, excitação) que caracteriza o pathos do sublime, oposto nisto à serena percepção da beleza".

Garrel, na bela expressão de Gérard Courant, abole a quarta parede do teatrinho familiar; e lança os personagens num décor selvagemente cinematográfico - do western, mas também das encenações in natura de outra grande xamã de presenças, Maya Deren -, o do sublime: a Viagem ao redor do meu quarto, novela de Xavier de Maistre, -  que poderia servir de título para todos os seus filmes, confrontos com o espelho e seus fantasmas regados a spleen e heroína - não é abolida (de fato, permanecemos no romance familiar, segundo uma expressão de Marthe Robert), mas transposta para uma arena cosmológica, mais adequada a seus propósitos alegóricos. O cinema de Garrel, talvez o grande herdeiro contemporâneo do kammerspiel alemão - cinema intimista que correu paralelo ao expressionismo nos anos 20 -, aqui sofre uma inflexão: reencontra o espectro fascinatório de uma certa infância da arte (e do cinema: retomada do fondu e da pantomima), feita de música e  de silêncio, de Proximidade e Distância; uma infância que, à semelhança do que foi a nossa, recupera o vaticínio dos grandes espaços livres e virgens.

Maio de 2011

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