in loco - cobertura dos festivais
Cine Holliúdy, de Halder Gomes (Brasil, 2012)
por Paulo Santos Lima
Causa perdida
O Brasil tem uma rejeição histórica
ao popular, disse Sheila Schwartzman. A observação,
citada em mesa da 6a Mostra de Cinema de Ouro Preto, expõe
uma dificuldade prática do nosso cinema reproduzir um repertório
mais genuíno e mais a ver com o Brasil. Sem muito contato
com esse específico de nossa cultura, as raras experiências
que encontraram algo do nosso imaginário coletivo são
verdadeiros trevos de quatro folhas: a chanchada dos 1950, o Candeias
de As Rosas da Estrada, as comédias de costume
dos anos 1970, os filmes d’Os Trapalhões, o encontro
de Nelson Pereira dos Santos com Milionário e José
Rico em Na Estrada da Vida e alguns outros poucos. Na
omissão do cinema, a TV assumiu a escrita do nosso inventário,
e fez do popular uma marca – o que, na prática,
é o popularesco, com seu repertório pronto para
a edificação da mass exploitation: as telenovelas,
os programas de auditório e afins, padrões tão
eficientes que, na seca desértica, são exportados
para o cinema nas comédias e melodramas tipo Glob oFilmes.
Ainda mal aferido em 2012, o popular (esse item ainda tão
proibido) tornou-se um mito – ou, pior, um valor.
Tapete Vermelho, de 2005, é um bom exemplo: em
vez de retomar a experiência material (estética)
do popular genuíno de Amácio Mazzaropi,
o diretor Luiz Alberto Pereira buscou o lugar possível
que o cinema brasileiro dos anos 2000 indica, o de um “cinema
autoral de qualidade”, e trouxe alguns temas “do momento”,
como a questão do MST, para ensaiar uma suposta homenagem.
(Re)visto à distância e em desconhecimento, Mazzaropi
tornou-se, ali, uma marca.
Posto
isso, chegamos ao filme de Halder Gomes, Cine Holliúdy,
cuja adoção de um repertório “popular”
(com aspas) vem por uma contingência, e não para
se franquear numa marca. Na história de Francisgleydisson
(Edmilson Filho), o herói idealista que abre uma sala de
cinema numa pequena cidade no interior do Ceará, nos anos
70, para manter barricada contra a inefável chegada da
televisão, está manifestada a defesa que filme e
diretor fazem do cinema - ou, mais precisamente, de um certo cinema
como experiência coletiva e catártica que teve sua
melhor expressão nas saudosas matinês. A causa de
Cine Holliúdy será um ideal quase messiânico,
porque aspirando algo tanto (ultra)passado quanto infactível:
infelizmente, aquele cinema como lugar de adesão e culto
convive hoje com o grande chacal da profusão de outras
plataformas audiovisuais, como TV, YouTube, Facebook, acesso a
dispositivos de captação, videogames e outros espaços
de interatividade.
Ao militar por essa experiência coletiva ancorada no repertório
das matinês, o longa de Halder Gomes só pode buscar
no repertório popular um meio de consumação
de um discurso que parece bastante incoerente em 2012. O popular
será, portanto, um ideal, um mito, uma aspiração,
inclusive porque a estética adotada em Cine Holliúdy
confirmará sua impossibilidade. Ironicamente, o momento
histórico tornará coerentes as escolhas feitas por
Halder, que tecerá um humor típico dos programas
de auditório, calcado em trocadilhos falados por personagens
arquetípicos de almanaque, como a esposa do prefeito, o
malandro que não quer pagar para assistir ao filme, a mocinha
fogosa irritada com o namorado que não desgruda o olho
do filme de kung-fu etc.
Esse
imaginário, que era das chanchadas e das sessões
pipocas dos anos 1940 e 1950, foi apropriado e mitigado pela TV,
que por sua vez é, hoje, o grande meio de imantação
coletiva popular, ainda que não num mesmo espaço
em comum. Por mais fiel e sólido que esse tal “repertório
popular” possa chegar à tela, haverá o buraco
negro da televisão para puxar pra si a referência
imediata. Inclusive porque a (falta de) mise en scène
seguirá, inexplicavelmente, a quadradice televisiva. É
bem estranho um filme que defende a sobrevivência do cinema
não consiga construir imagens fortes que colem no imaginário
coletivo – como colaram e colam as imagens de Hawks, Ford,
Welles, Rossellini, Kiarostami, Visconti, Godard e Coppola, etc.
É mais estranho ainda (e revelador) que o mais forte momento
deste Cine Holliúdy seja quando o projetor enguiça
e Francisgleydisson encenará, “in loco”, como
num teatro de variedades ou circo, a continuação
do filme de artes marciais com o qual a platéia da cidade
se extasiava. Aliás, é dessa sequência, vista
aqui na imagem acima, que há uma única sacada visual
de cinema: o protagonista salta no meio da sala e seu
vulto “enquadra-se” na tela, num feliz gesto conceitual
de Halder Gomes.
Já
antes dessa 36a Mostra, desde quando passou no Cine Ceará,
Cine Holliúdy conquistou simpatia de alguns jornalistas
e críticos, como se singeleza fosse, necessariamente, uma
sabedoria cinematográfica. Seria um fetichismo sobre a
pureza do popular, como os europeus quando viram os índios?
É só retomar Mazzaropi e perceber o equívoco:
ali, ele expunha um olhar ingênuo e jeca sobre o mundo para
assim esbofetear a intelligentsia cosmopolita, trazendo
o genuíno popular à tela na sua própria representação
de um típico popular. Incomodando a convenção,
a ingenuidade torna-se um ensinamento, um estar no mundo, nos
mostrou Mazzaropi na melhor ilustração do que seria
sabedoria popular. Mas se a causa e a forma com a qual Cine
Holliúdy defende essa causa revelam ingenuidade e
equívoco, a paixão e fé, ou cinefilia, que
levaram Halder Gomes a dirigir um filme merecem respeito: é
raro um cineasta anunciar seu trabalho como Halder apresentou
na primeira sessão do filme na Mostra; emocionado, parecia
um pai mostrando o seu dileto filho. Neste já mencionado
ceticismo atual, um filme feito por um idealista (cinéfilo)
já é, pelo menos, interessante.
Novembro de 2012
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