visita guiada
Por um Cinemaneiro
por Eduardo Valente
Como a gente envelhece muito mais rápido do que
se dá conta, o ano era o hoje já distante 1998. Na terceira edição
do Festival Brasileiro de Cinema Universitário, iniciativa seminal
dos alunos de cinema da UFF, em Niterói, era exibido o primeiro
filme do recém-nascido curso de cinema da Universidade Estácio
de Sá. O filme era visto com boa dose de ceticismo pelos alunos
espectadores (em sua maioria da UFF), não só por uma já arraigada
“luta de classes às avessas” entre os alunos das universidades
públicas e privadas do Brasil, mas especialmente pela má fama
que a referida universidade carregava de montar cursos a toque
de caixa aproveitando modas – como era o cinema brasileiro então.
Se, de fato, o filme (chamado O Resgate) apresentava muitos
dos defeitos que se espera de um filme de tantas estréias (do
diretor e equipe, mas também do curso de cinema), por outro lado
o grupo de alunos que o representou no Festival, capitaneado pelo
referido cineasta (Frederico Cardoso), ganhou a difícil simpatia
de todos os uffianos de então. No ano seguinte, o mesmo grupo
de alunos surgiu no Festival com impressionantes seis curtas (nada
menos do que três deles dirigidos por Cardoso), e a simpatia logo
se transformou em profundo respeito – culminando com a decisão
do júri de dar um prêmio especial ao grupo pela iniciativa de
formar uma cooperativa entre os alunos para conseguir produzir
mais filmes a partir do trabalho coletivo. Nascia a Cooperativa
Fora do Eixo.
Corta para 2006. Mais de 30 curtas produzidos
depois, um longa finalizado e mais cinco em realização, a Fora
do Eixo é hoje mais do que uma realidade no cinema carioca jovem:
é uma utopia viva – e cheia de tentáculos. Eu, então um dos coordenadores
do Festival Universitário, posso dizer que vi e tenho visto de
perto a evolução de um grupo de amigos que tomou para si como
poucos a obrigação de realizar sempre – não importando quais as
brigas a serem enfrentadas. A Fora do Eixo é hoje uma referência
tão forte, que foi nela que o cineasta Roberto Santucci (diretor
de Bellini e a Esfinge, sem qualquer relação prévia com
o grupo) foi procurar ajuda quando decidiu que, também guerreiro,
precisava filmar um próximo longa mesmo sem conseguir nenhum recurso
externo de apoio. Para filmar com raça, devem ter lhe dito, este
é o pessoal a se procurar.
Não se satisfazem, porém, em fazer seus próprios
filmes (como o clichê indicaria para ex-alunos de uma universidade
particular): em 2001, Cardoso à frente, nasceu dentro da Fora
do Eixo o projeto Cinemaneiro. Num momento em que pareciam pipocar
oficinas de audiovisual nas comunidades carentes (em muito facilitadas
pelo rápido desenvolvimento dos equipamentos digitais), o Cinemaneiro
logo mostrou que não tinha a menor vocação de sanguessuga de dinheiro
público para seu próprio proveito: além de correr atrás de pioneiros
patrocínios privados para suas atividades, teve coragem de dar
o passo seguinte. Num mercado que, às vezes (boas intenções à
parte), parece mais perto de gerar trabalho e frutos para os próprios
realizadores das oficinas do que para aqueles para quem elas são
oferecidas, o Cinemaneiro não se satisfez em esgotar suas atividades
com o fim das oficinas: montou na Lapa um centro de produção (NUPROCINE),
com equipamentos e financiamento próprio, onde os formandos pelas
suas oficinas que efetivamente se interessem por continuar trabalhando
na área podem se exercitar produzindo depois do final das visitas
em suas comunidades.
Quem
vai à Rua Morais e Vale na Lapa, especialmente nas noites de quinta-feira,
sente a força que emana deste trabalho: um centro de produção
sempre em polvorosa, com ilhas de edição digital em pleno funcionamento
nas mãos dos ex-oficineiros, com produtores resolvendo coisas
no telefone e nos computadores, armando esquemas das próximas
filmagens. Do lado de fora, ao ar livre, o mesmo grupo monta tela
e equipamento de som e realiza aquele que talvez seja o mais simpático
(mesmo que não o mais cinéfilo) cineclube do novo movimento cineclubista
carioca: o Beco do Rato. Pura celebração em torno da utopia de
fazer cinema num país onde não se dá com facilidade o direito
de ninguém a sonhar. Quanto mais a realizar o sonho.
No microfone, apresentando as sessões, o mesmo
Frederico Cardoso de oito anos atrás – curiosamente parecendo
quase mais jovem. Inquieto, apaixonado, agregador – nunca sozinho.
Fred Cardoso é, sem dúvida, um dos mais importantes nomes do cinema
brasileiro que ninguém ouve falar nos grandes jornais. Sempre
cheio de idéias, sua obsessão no momento (além de continuar o
Cinemaneiro, a Fora do Eixo, a Boteco Cinematográfico – sua produtora
com Viviane Ayres – todas funcionando no mesmo quarteirão lapiano)
é, para variar, unir as pessoas em briga: partir para o enfrentamento
político, junto com outras entidades (Nós do Cinema, Observatório
das Favelas, Associação de Cineclubes do Rio), em torno de temas
como a conturbada escolha do sistema de TV digital no Brasil.
Fred não costuma ser só de discursos e resmungos: é cara que faz.
E, melhor ainda, faz com alegria, com cerveja, com paixão, com
utopia. Daquele quarteirão na Lapa, com certeza, não se espera
menos do que tudo.
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