in loco Da
lamentação à ação por Paulo Santos Lima
Debate 2: Filmes extintos e filmes mitos – como fica o historiador
sem a imagem? Algumas imagens contemporâneas tomaram-me
de assalto nesses dias em Ouro Preto: O Andarilho de Cao Guimarães e Jonas
e a Baleia de Felipe Bragança são algumas destas. Mas a experiência de ver
uma seqüência de Também Somos Irmãos me foi emocionante, senão dramática.
Telecinado, fiel ao estado da cópia, o trecho carregava suas rugas históricas:
riscos, manchas, instabilidades, alguns saltos causados pelos fotogramas assassinados,
pulsação. O som, trôpego, parecia lutar por sua audição na platéia. Não só por
seu valor histórico, ficou claro que José Carlos Burle fizera uma obra valiosa
como cinema – filmada em locação, tomadas na rua e favela, profundidade de campo
e modulação de espaço, montagem orgânica. Mas havia beleza naquela triste situação
do filme: na sua luta para sobreviver, já na UTI do tempo, ele ainda pelejava
em mostrar, em ser visto... em ser cinema. Essas imagens,
apresentadas por Luís Rocha Mello, mediador desta segunda mesa, correspondem à
pauta das discussões: se é uma realidade que perdemos a maior parte de nossos
filmes pré-anos 50, como construir nossa memória? A ausência das películas, para
mim algo bastante brutal, ganha certo relevo quando sabemos que Também Somos
Irmãos é um dos títulos citados por Alex Viany no seu “Introdução ao Cinema
Brasileiro” como exemplo de bom cinema popular, ao lado de Moleque Tião,
Meu Nome É Ninguém, Favela dos Meus Amores (todos estes completamente
perdidos). Rocha Melo, introduzindo o debate, alerta sobre
as dificuldades de construção de um discurso historiográfico, algo reiterado pela
professora e autora de “Humberto Mauro e as Imagens do Brasil”, Sheila Schvarzman,
que apontou sobre a questão da história ficar esburacada, sobretudo a dos anos
30 e 40. Mesmo no caso dela, que pesquisou sobre Humberto Mauro muito além dos
filmes, indo atrás de documentos, registros e dos valiosíssimos cine-romances
(tipo de fotonovelas que vertiam os filmes para as páginas das revistas), quase
sempre bem fiéis aos originais cinéticos. Mas Schvarzman,
também historiadora, ressalta, sobre Favela dos Meus Amores, de Humberto
Mauro, que temos como perdido um filme importantíssimo na carreira de um cineasta
que foi central para os anos 50. O samba, estava se constituindo como ritmo nacional
nos anos 30, e o cinema contribuía para isso nesse momento. Sheila, que durante
sua pesquisa descobriu vários filmes que Mauro fez com o INCE, defende com razão
a importância dos filmes como material historiográfico, uma vez que a mesma encontrou
no material um outro Humberto Mauro e pôde fazer uma outra leitura além da feita
por Paulo Emilio, uma leitura de historiadora. O jornalista
e pesquisador Carlos Augusto Brandão, do Centro de Pesquisadores do Cinema Brasileiro
(RJ), leva a questão da preservação para a seara da identidade cultural. Seria
com ela que resistiríamos à colonização cultural, e daí, para Brandão, ser função
do Estado preservar essa identidade cultural. Após fazer uma dolorosa citação
dos filmes brasileiros perdidos (mais ou menos 70% dos longas brasileiros feitos
antes de 1960), Brandão alerta que, se um país não preserva sua memória, outra
memória ocupa o espaço, porque não existe lugar vazio na cultura. O
pesquisador Arthur Autran diz que o grosso do que foi perdido se concentra até
os anos 40, com a coisa sendo menos grave a partir dos 50. Ele relembrou, por
exemplo, que o cânone de Alex Viany foi visto apenas quando exibido, e não revisto
a posteriori. E essa historiografia feita por Paulo Emilio Salles Gomes,
Alex Viany etc fora feita sob muita dificuldade, mas era como dava para ser feita.
Tudo que é falado de cinema primitivo o faz a partir de textos, pois já estavam
todos perdidos. Autran ressalta que não podemos nos omitir
de fazer uma historiografia do nosso cinema por não termos cópias. Que devemos
evitar o fetiche pela cópia – até mesmo pela origem industrial e reprodutível
do cinema, com suas dificuldades várias, a multiplicidade de versões (o que instabiliza
o que seria um “original”). Para ele, não há esperança de encontrarmos material
pré-anos 50, por isso temos de ir atrás de outras fontes, essas a que damos certa
desimportância, mas que podem ser ricas: revistas, cine-romances, depoimentos
(ele lembra, aqui, o livro de Maria Rita Galvão, “Crônica do Cinema Paulista”,
feito a partir de entrevistas), certificados de censura, processos de filmes acabados
(aqueles pelos quais os produtores pedem verba para finalização, e onde acha-se
roteiro, laudo técnico, pareceres etc), publicações ligadas aos sindicatos, etc.
O colecionador Antônio Leão da Silva Neto, autor de “Astros
e Estrelas do Cinema Brasileiro”, “Dicionário de Filmes Brasileiros” e uma biografia
sobre Ary Fernandes, foi importante presença na mesa. Um dos fundadores da Associação
Brasileira de Colecionadores de Filmes em 16 mm, ele próprio se disse um não acadêmico,
alguém de fala mais popular, mas que tornou sólida uma ação entre a teoria e a
prática – ou seja, de ser mais uma fonte de documentação para pesquisadores, para
a construção de nossa história. Nas suas pesquisas, Leão já encontrou obras raríssimas,
como o primeiro longa de Carlos Reichenbach, Corrida em Busca do Amor,
tido como perdido até mesmo pelo cineasta - além de ter avisado, agora, possuir
o trecho em áudio perdido de Tudo Azul. Mais absurdo
que sabermos que Leão conseguiu numa feira O Dragão da Maldade contra o Santo
Guerreiro sem uma das latas porque comprada por alguém que queria decorar
sua casa, é o fato deste grande pesquisador ficar em certa clandestinidade, graças
à visão imbecil de alguns produtores, que inclusive os ameaçam. Ameaçam gente
que guarda e preserva filmes brasileiros e que os exibe gratuitamente. É a partir
dessa situação, não menos que estúpida e tenebrosa, que o caríssimo Leão propôs
um intercâmbio maior entre pesquisadores e colecionadores, pois estes últimos
possuem títulos tidos como perdidos. Foi apontada a idéia de fazer uma listagem
do acervo dos colecionadores de todo o país e registrá-la na Cinemateca Brasileira,
algo que o Censo do Cinema Brasileiro mal ou bem tentou começar. Se
a situação das cópias, ora maltratadas, feridas ou falecidas, dói-me um bocado,
confesso ter saído mais aliviado deste segundo debate, naquilo que ele representou
de ação efetiva, de conscientização somada à prática, e não apenas o blablablá
que timbra a média dos debates nacionais, para muito além dos fóruns culturais. editoria@revistacinetica.com.br
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