in loco Heranças
em desacordo por Paulo Santos Lima
Os Desafinados (2007),
de Walter Lima Jr. O Fim da Picada (2008), de Christian Saghaard Os
tempos, o passado e o presente, são uma coisa só, mais ou menos disseram os irmãos
Eryk e Pedro Paulo Rocha, cada um à sua forma, no seminário “O Cinema Brasileiro
Moderno: Heranças e Rupturas nos anos 2000”. É interessantíssimo, daí, que a programação
de filmes da 3º CineOP não tenha sido apenas um algo a mais, um complemento à
programação histórica, mas sim uma seleção que nos ajuda a (re)ver certos filmes
e modos de se fazer cinema. No caso da produção contemporânea, isso é premente,
uma vez que certos traços modernos presentes nos cinemas antepassados surgem à
vista. Daí ser notável, por exemplo, observar como o público do Cine Vila Rica
reagiu desconfortável a O Fim da Picada, de Christian Saghaard, e mais
aconchegado na projeção de Os Desafinados, de Walter Lima Jr (foto acima). Christian
Saghaard, egresso do curso de cinema da ECA, curtametragista com obra coerente
com um universo estético primo dos HQs, filmes de terror, almanaques e certas
apropriações da cultura de massa (inclusive a religião, e aqui me permito colocar
esse tema como “mass cult”), estréia na direção de longa com um trabalho com ecos
longínquos ao de Rogério Sganzerla – os “HQs” mencionados acima informam-nos disso.
A história, absurda, começa em 1850, nudez e corpos filmados com um despudor freado,
e trata de um personagem que, através de uma Exu que manga dele, é transportado
para a São Paulo do século 21. O caos domina a cidade, como a São Paulo de O
Bandido da Luz Vermelha, e o filme nos apresentará uma série de boçais, de
ladrões a dondocas alienadas. “Boçais”,
um termo caro ao cinema de Rogério Sganzerla, que dá conta de um mundo em perigo,
de um desbarrancamento do homem. Uma estética para isso, com extremo requinte
e intenção fotográfica na mesma medida em que o acaso da luz estourada e da sujeira
da locação tingia o enquadramento, era algo emulado ou coincidente em outros filmes
realizados naqueles anos (os de Ozualdo Candeias, de certo modo, mas também alguns
tantos outros). Sendo um realizador de hoje, Christian Saghaard responde ao mundo
atual e dispõe daquilo que o mundo possui agora. A estética do bom acabamento,
essa que parece a pauta de uma fábrica de cristais, é utilizada em O Fim da
Picada. Com bastante cuidado e parcimônia, claro, e é isso que mantém expressivas
as opções tomadas pelo diretor (que conta, aqui, com o habilidoso André Francioli
na montagem). O desfoco, o slow motion (utilizado, por exemplo, numa ótima
seqüência que mostra pequenas crianças lavando um carro sujo com sangue juvenil
como em um anúncio de sabão em pó), uma câmera inquieta, enfim, estamos num jogo
feroz que herda o cinema cáustico dos anos 60/70, releituras à brasileira de filmes
de demônio e uma mordacidade bastante singular. Jogo crucial,
também, na utilização de um humor proto-chanchadesco que difere bastante do cinema
de Sganzerla, que expunha ainda mais o mal-estar geral da nação. O lúdico, no
caso, estava na imagem, no filme, no cinema, enquanto o horror estaria naquilo
que as imagens reproduziam, naquilo da qual elas eram resultantes (o nosso mundo,
o Brasil). O Fim da Picada, hoje, filme imperfeito e bastante político,
dilui-se no enorme fluxo de imagens, contamina-se com a tal demanda de um certo
tipo de cinema “de qualidade”, o que talvez o assassine um pouco. Mas O Fim
da Picada é, como explicita o título, o fim de um mundo que já vem morrendo
há tempos. É, também, o fim do cinema – o mesmo fim que Joel Pizzini afirmou no
seminário citado, a partir da declaração de Rossellini em 1964 sobre o cinema
ter acabado como um campo de idéias. E a reação da platéia, bastante resistente,
sorrisos embaraçados, talvez responda sobre as qualidades que há neste primeiro
longa de Christian Saghaard, que ao não adotar uma estética mais radical diz muito
sobre o modelo a partir do qual os olhos contemporâneos estão formatados. A
herança cinéfila e a reverência de Saghaard a Sganzerla, entretanto, resultaram
num filme mais forte (força da imagem, no caso, força das instabilidades dentro
do jogo imagem-som-espaço, da câmera-mundo) do que o de um homem que viveu naquele
momento histórico e completamente engajado no mais conhecido movimento cinematográfico
de nossa história nacional, o Cinema Novo. Walter Lima Jr, diretor do alegórico
Brasil Ano 2000 (1969) e dos extraordinários A Lira do Delírio (1978)
e A Ostra e o Vento (1997) – o primeiro completamente enlevado na maré
do Cinema Novo; os outros dois, buscando formas outras de se encaixar em seus
momentos, sobretudo na adoção de um lirismo que seria o carro-chefe da obra de
Walter Lima nas últimas três décadas –, trabalha dentro da convenção em seu Os
Desafinados. O que parece mais curioso é que outros tantos cineastas modernos
brasileiros, como Paulo César Saraceni e Edgard Navarro, mesmo ajustados aos novos
mandamentos de produção e equalização de forças de um filme, conseguem trapacear
ou sabotar a regra – no caso de ambos, um abalo na instância narrativa, as intrusões
de elementos alienígenas à diegese e estilo. Enfim,
para se aproximar deste novo filme de Walter Lima Jr., mais vale deixar de lado
sua experiência pretérita. Não está em questão a continência ao que se fazia de
moderno nos anos 60. Tampouco a cobrança para que um cineasta necessariamente
faça um cinema de ruptura. Longe disso. Mas é uma questão moral no cinema brasileiro
de hoje, assolado pelas superproduções ignóbeis e projetos mal realizados, que
um cineasta que militava por outro tipo de mundo e cinema endosse essa anomalia
que são os gastos com filmes que não apresentam artisticamente nada de relevante
ao nosso momento. E, nisso, Os Desafinados encaixa-se muitíssimo bem. Walter
Lima fez um filme transnacional, levando equipe inteira para Nova York, reconstituindo
histórica e naturalisticamente a cidade, lembrando muitas vezes o cinema de um
Sérgio Rezende. E é do cinema de Rezende que parece ter vindo Os Desafinados.
O joguete entre os personagens, a dramaturgia televisiva, o modo como as imagens
constroem o drama. Na história, um grupo de amigos enfeitado
por uma belíssima musa, entre os anos 60 e 70, entre a Bossa Nova e o pós-AI-5,
entre crises familiares, traições e amores resistidos. Cláudia Abreu (belíssima
como a melhor aparição corporal e imagética no filme, cumprindo um papel infeliz
com certa destreza) é também uma boa ilustração sobre o que é este filme. Se,
antes, Walter Lima levava a câmera aos corpos para, assim, detectar algo interior,
pulsão total, fundindo a beleza epidérmica com a beleza do estar no mundo agora,
a personagem Glória de Cláudia Abreu é apenas um contraponto dramático ao protagonista
de Rodrigo Santoro. O vídeo que mostra os personagens do
grupo bossa-jazz “Os Desafinados”, nos anos 60, jovens, e que será o gancho para
o filme alternar passado e presente, é de uma limpidez absurda. Filmado por Dib
Lufti – dado inacreditável por estarmos, aqui, falando de um dos maiores cinegrafistas
de nosso cinema –, não há corpo nessas imagens P&B. Nem no filme. Para quem
fazia não um cinema de corpo (elemento moderno, segundo o Rogério Sganzerla crítico
de cinema), mas que se colocava ao redor dos corpos, tentando capturar algo invisível
e interno a eles (mas não o psicologismo, que está forte e medonho neste Os
Desafinados), é um tanto triste registrar esse lapso.
Junho de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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