in loco
Glauber e Rogério: arqueologia de uma relação
por Paulo Santos Lima

Uma bela imagem inimaginável

A imagem que timbrou a 3a Mostra de Cinema de Ouro Preto, este ano, é a da cerimônia de abertura, na qual as famílias de Glauber Rocha e Rogério Sganzerla encontraram-se à vista de todos – mídia, holofotes, palco e luzes –, quebrando uma idéia viciada e absurda que enlameou um acesso mais livre e pertinente às obras desses dois gênios nacionais, que se não eram gêmeas, eram bastante primas, talvez irmãs. Uma imagem potente, como um único plano que dá conta de toda uma história, e que estanca uma injustiça de anos, sobre a relação entre esses dois autores e entre suas obras. Uma imagem total, corpos amantes e herdeiros de Rogério e Glauber, ex-mulheres, filhos, mãe, todos na mesma alça de mira, juntos num enquadramento sem montagem, sem corte, paisagem glauber-sganzerla-rocha-rogério à frente de nossos olhos...

Helena Ignez, musa de todos, de Glauber num tempo e de Rogério em outro, mãe da Paloma, filha de Glauber, e da Sinai e Djin, filhas de Rogério. Pedro Paulo, o filho transcontinental, total sintonia com o pai Glauber que buscava o mundo. Paula Gaitán, a mulher do último amor e dos últimos dias, e os caçulas Eryk e Ava. Dona Lúcia, a mãe de Glauber, o sol do filho, a luz do cinema, a clarear mais e mais. Todos ali (Djin e Ava ainda não haviam chegado a Ouro Preto, mas estavam ali, como que no extracampo). Uma conexão nuclear, orgânica e imagética, total, entre Sganzerla e Rocha.

Pois a moldura para esse quadro teria de ser de singularidade idem. A CineOP instalou no palco do Cine Vila Rica uma banda eletro-acústica, de Macbooks a berimbaus, fazendo coro com imagens projetadas na tela, orquestradas pelo diretor Chico De Paula, em duração tão alongada quanto apontada para o modelo típico das solenes (e chatas) cerimônias de abertura. As imagens, interferidas, foram buscadas do universo cultural dos anos 60, sobretudo imagens-ícone de filmes, do Luz de O Bandido da Luz Vermelha ao Antonio das Mortes de Deus e o Diabo na Terra do Sol, de músicos a alguns outros exemplos do nosso valoroso cinema moderno que caminhou paralelo ao Cinema Novo, como o belíssimo Luis Sérgio Person de São Paulo S.A. Sons dissonantes saindo da tela nos momentos ausentes da banda no palco, depois a mesma fazendo a trilha para o que estava na tela. Uma cerimônia com postura moderna, usando a gramática de imagens-relâmpago da nossa contemporaneidade.

Uma das funções de um festival de cinema é fazer desmoronar as idéias prontas, pô-las em xeque, tirar-lhes suas roupas de verdade absoluta para então deixá-las nuas e à vista da reflexão e dos juízos. É implodir prédios e deixar, assim, o terreno aberto a novas arquiteturas. O encontro ilustre e quase sobrenatural das famílias desses dois maiores gênios de nossa história cinematográfica simboliza uma asfaltada sobre o terreno enlameado pela boçalidade que cristalizou verdades tortas, equívocos encerrados. Dentro da pauta anual da CineOP – a de reunir, mobilizar e discutir as ações de restauração, preservação e veiculação de nosso acervo audiovisual (nossa memória, a ser utilizada para repensar o hoje) –, a temática desta 3a edição faz um verdadeiro trabalho de arqueologia, revelando velhos artefatos (des)conhecidos, enterrados desde sempre. Um restauro, ou retorno, ao momento mais emblemático de nosso cinema, de nossa história.

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Reentradas na atmosfera de Rogério e Glauber

A Miss e o Dinossauro – Bastidores da Belair (2005), de Helena Ignez
O Pátio (1959), de Glauber Rocha
Anabazys (2007), de Paloma Rocha e Joel Pizzini
Diário de Sintra (2007), de Paula Gaitán

Alguns curtas de Sganzerla e Glauber fizeram um belíssimo adorno à histórica imagem da cerimônia de abertura. Alguns emocionantes, como A Miss e o Dinossauro. Helena Ignez é quem dirige esse filme-homenagem-memória-tributo-paixão à produtora que Rogério Sganzerla e Julio Bressane criaram em 1970, que durou apenas 5 meses mas que rendeu 5 filmes fundamentais para o cinema de invenção – sobretudo Sem Essa Aranha, de Sganzerla, pela radicalidade formal. A imagem da lâmpada, síntese do gênio e coração do cinema, e depois a de Helena como ponte até o rosto em desfoco (portanto, virando coisa una dentro do plano) é uma das grandes seqüências contemporâneas. O filme, aliás, trabalha com várias sínteses daquela experiência coletiva. Imagens com pulsação granular-química do Super-8, que aludem a um tempo morto e passado, mas que saltam indóceis contra a tela, potentes de vida. Na simplicidade adotada por Helena, que preferiu esculpir um sentido a partir das imagens de época, sem alterá-las na essência, temos uma sensação de outro mundo, outro viver e ver. Temos trechos dos filmes da Belair, Rogério, Helena, Julinho, outros agregados ao projeto como Helio Oiticica, Neville D’Almeida, Guará, em total conluio entre eles e para a câmera. E temos a lâmpada. E o coração de Helena Ignez.

O Pátio é outro filme de coração. Glauber filma Helena, ambos enamorados. Ela e Solon Barreto em cena, abraçando-se, tocando-se, e a câmera de Glauber fazendo algo idem: capturando natureza e ladrilho, interligando-os para a composição formal do espaço, construindo ali “o Espaço”. Neste, um homem e uma mulher tateiam-se. São desenhos: de corpos, vultos, chão quadriculado, árvores e mar. Mágico, Glauber captura o corpo das coisas, e o mar se faz mar, água em movimentação, assim como as árvores e o casal. Uma experiência que emula o cinema avant-garde, mas que prenuncia o cinema de Glauber, que torna organismo vivo todas as forças e presenças em cena, e isto (o filme) conectando-se arterialmente com o mundo.

A imagem de Glauber Rocha, tremida pelo Super-8 câmera-na-mão. Cores, grãos e homem em efervescência na tela. Logo depois vem o sol. Sol parido da Terra, daquele primeiro plano de A Idade da Terra. O sol vai saindo de sua mãe enquanto a voz de Glauber disserta sobre o Brasil em seu subdesenvolvimentismo inerente, sobre ele como cineasta que contribuiu para fazer o cinema brasileiro, de como ele estava marginal na classe cinematográfica. Ele, que dirigiu como re-colonizador, não como colonizado. O discurso de um homem às voltas com a própria política nacional.

Este é o início de Anabazys, espécie de documentário dirigido pela filha Paloma Rocha e o genro Joel Pizzini. A exibição no Vila Rica foi mais que um mergulho transcendental na última obra-prima de Glauber. Foi mais que um profundo contato com uma experiência de cinema total, fatal, vital, que foi a deste derradeiro filme de Glauber. Houve, através das imagens, uma espécie de descolamento, pedaços, transferências a outros espaços e tempos. A tela dragava para ela o nosso olhar, mas, na fileira ao lado, estava dona Lúcia Rocha, assistindo ao Anabazys, que é A Idade da Terra, que é Glauber, que é obra e filho, e cinema. A atenção à dona Lúcia criou-me uma vertigem ótica, entre o fora e o dentro da tela. E lá, no filme, o sol já saíra da Terra e iluminava locação e cegava a lente da câmera.

Essa foi uma sensação comum aos outros filmes que se aproximaram do cineasta e ao A Miss e o Dinossauro, de Helena Ignez, que reencontra uma experiência coletiva, mas sempre voltada para a imagem da lâmpada, que é a luz do cinema, e que é o próprio Rogério Sganzerla, coração pulsante daquele breve momento brilhante de nossa história criativa. O reencontro com esses cineastas jamais seria efetivado por vias “normais” (de um documentário de cabeças falantes e que faz uma mera coleta factual, como é o péssimo Glauber, o Filme – Labirinto do Brasil, de Silvio Tendler). Os filmes escolhidos para a 3ª CineOP, talvez por terem sido realizados por pessoas muito próximas aos cineastas, surtem em reentradas às órbitas desses dois gênios.

No caso de Paula Gaitán, com seu Diário de Sintra, esse espaço orbital parece mais rarefeito, e é aí que está a beleza desse filme de arqueologias e prospecções. Ela, viúva de Glauber, construiu um belo trabalho sobre os últimos dias do marido em Sintra, Portugal. O exercício é de experimentação, um tanto mais avizinhado à vídeo-arte atual, com sobreposição de elementos visuais e textuais num mesmo plano criando, assim, uma intertextualidade. Como se para se aproximar de um Glauber pan, além das nuvens e da terra (e da Terra cinema). Assim, Paula junta imagens de época – capturadas em 1981, quando ela, Glauber, Eryk e Ava estavam nas plagas lusitanas – a imagens atuais e extremamente metafóricas, simbólicas, como as fotografias de Glauber presas numa árvore ou um som extraído do Kynemas de Pedro Paulo Rocha. A ponte entre os dois tempos parece ser as fotografias de Glauber, apresentada a vários de lá para ver se alguém reconhece quem é representado na foto. Este é o dado mais objetivo, claro e factual do filme, que é confeccionado com imagens passageiras, de vapor transcendente, pertencentes a outra idade, outro contexto, outra era, mas se colocando no seu momento histórico, através de uma resposta de Paula – e também de Eryk, já que o DNA dessas imagens atuais (e a resultante final delas, sobrepostas) e das recitações literárias são coisas um tanto próximas ao que ele fez em Rocha que Voa, Intervalo Clandestino e Quimera.

Retornando aos espaços de Portugal, Paula Gaitán respeita, ao menos espacialmente, os procedimentos de aproximação. Mas, claro, Glauber Rocha é uma onipresença que contamina toda e qualquer imagem, todos os sons (a voz dele rasga potente os planos, mesmo distante, sobrepondo-se titã aos demais ruídos e vozes). A busca é até mais intensiva, uma vez que a câmera de Paula (de hoje) parece pelejar para encontrar vestígios de Glauber Rocha (a experiência de e com Glauber, mais precisamente), entranhados na terra, nas pedras, na paisagem ou nas muralhas arruinadas do mítico Castelo dos Mouros. A instabilidade das imagens vincula os dois momentos históricos da captação – cola-os. Assim, a visita atual de Paula Gaitán de fato encontra algo de antes. E Glauber vive, mais potente que nunca, uma vez que sua imagem é uma onipresença, quase uma assombração (de luz, do bem) que norteia o fluxo estético. Talvez a pergunta a ser feita a este filme é “mas como reter o além tudo, além tempo-espaço e além imagem?”. Aí, parece, a grande procura de Diário de Sintra é por Glauber, claro, mas também por uma expressão a respeito da paixão e memória de Paula Gaitán. E Paula pega a imagem de um Glauber com energias reduzidas e o joga para o presente, para além daquele tempo. Um gesto e tanto de amor.

O momento histórico retratado pelo filme é logo após Glauber ter lançado seu A Idade da Terra. Assim, Anabazys e Diário de Sintra fazem intercâmbio. Joel Pizzini e Paloma Rocha, diferentemente de Paula, gravaram entrevistas, mas utilizam essencialmente imagens dos filmes de Glauber e dele próprio. Aqui como no filme de Gaitán e em A Miss e o Dinossauro, de Helena Ignez, a busca se faz. Anabazys emula uma das mais viscerais experiências da história do cinema ao mesmo passo em que procura descobrir elementos, desvendar a complexa gramática deste último filme de Glauber (que, explicada pelo próprio autor, parece bem mais simples e bem diretamente apontada para o coração de nossa cultura, nosso sincretismo e o circo político que assume papéis santos e diabos). Se Paula Gaitán constrói novos materiais visuais para encontrá-los (enquadrá-los) às imagens em Super-8 de Glauber naquele 1981, Helena, Joel e Paloma resgatam, através da montagem e da escolha das imagens já filmadas, a atmosfera respirada e compartilhada entre os mestres e seus amores, afetos e afins (até Joel, se pensarmos em Abry, sobre dona Lúcia Rocha, e nas imagens que ele filmou de Sganzerla, a pedido do próprio). Os tempos, passado e presente, de fato, juntam-se.

Sessões históricas, as desses filmes. E que inesquecível momento o de dona Lúcia Rocha assistindo àquele turbilhão de sentidos, ares, imagens, filmes e vozes de seu filho Glauber em Anabazys. É em momento como este, em que as já correspondentes temáticas histórica e de preservação entrelaçam-se atomicamente, que o elo torna-se aço, concreto, evidente como um filme na tela, pronto para comover aqueles que ignobilmente não percebem que os anteriores feitos, filmados e iluminados na tela, estão vivos na corrente sanguínea de nossos artistas contemporâneos, são um DNA eterno.

Junho de 2008

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