Cleópatra, de Julio Bressane
(Brasil, 2007) por Francis Vogner dos Reis
Elogio
ao amor Cleópatra de Julio Bressane é um filme
anti-intelectual. A afirmação pode parecer irônica, mas se levarmos em conta que
Bressane não usa o cinema como um mero mecanismo de reflexão intelectual (suas
imagens são concretas, não metáforas) e também não o tem como um meio de investigação
racional que vai delegando sentidos e leituras imediatas a cada imagem, a pecha
de “filme cabeça” não faz muito sentido. Seus filmes, Cleópatra em especial,
não são invólucros com um conteúdo ilustre, não possuem aspirações inteligentes:
o que eles têm são sensibilidades únicas que existem a partir de suas imagens.
As preocupações do diretor Julio Bressane certamente são fruto de seu singular
instigamento intelectual, mas seus filmes não existem exatamente para contemplar
sua vasta cultura e se adequar à sua visão de mundo. Seus filmes, assim como os
de Sganzerla, Pasolini e Godard são tão grosseiros quanto sublimes. Seu segredo,
seu espírito, reside nessa dualidade. Este Cleópatra
que foi vaiado por uma parte do público no festival de Brasília não é um de seus
filmes que pedem uma abertura maior do espectador para estabelecer uma relação
com ele. O mito da rainha egípcia Cleópatra VII está lá e Bressane o respeita
quase que integralmente. Sua fama de mulher culta, seus casos com Júlio César
e Marco Antônio, a política – tanto a de diplomacia quanto a de alcova – e sua
morte. Há até uma estrutura dramática (mas não exatamente um desenvolvimento dramático),
algo raro nos filmes do diretor, apesar de que a intenção de Bressane não é fazer
um trabalho como os de Cecil B. DeMille e Joseph L. Mankiewicz. No
filme, Julio Bressane faz o que pode ser considerado um estudo poético da beleza
ou da expressão da beleza. Não de uma beleza que se julgue a partir do enlevo,
da norma ou, paradoxalmente, da sua negação. O diretor não trabalha no nível da
oposição nem busca afirmar o que é belo. Seu trabalho é o da transcendência do
belo, de ultrapassar o que por si só é considerado “bonito” ou “artístico” para
atingir uma força que emana das imagens, de suas somas, de seus signos. Em outras
palavras: o esforço de Bressane em Cleópatra é atravessar a “estética”
(como norma de beleza, de valor, de sentido), indo além dela – nada mais natural
já que em alguns de seus últimos trabalhos ele escolheu personagens de “passagem”
como um tradutor (São Jerônimo) e o filósofo da transvaloração (Nietzsche). São
personagens no limiar de um mundo velho e na tentativa de conferir valor e significado
a um mundo novo. Bressane
procura em Cleópatra uma personagem capaz de sintetizar, e trazer à luz, toda
sorte de imagens necessárias para que ele trabalhe a expressão – pictórica, léxica
e musical – de questões que englobam sua poética sobre o conhecimento e a arte
(“sou Alexandria e sou Atenas”, diz a personagem), uma espécie de versão do autor
sobre as imagens que constituem o conhecimento e a arte ocidentais. A Cleópatra
de Alessandra Negrini (na performance mais radical do cinema brasileiro nos últimos
anos) é uma espécie de médium, de receptáculo que absorve e transborda ao mesmo
tempo as forças vitais da beleza e do conhecimento. Tanto que ela é cortejada
pela Roma decadente que sofre de uma aridez criativa, de uma escassez de beleza
e de um sufocamento do poder. Segundo o próprio César “a cultura latina é um erro,
uma deturpação da grega”. Roma tem em Cleópatra uma imagem da promessa de ser
o que não conseguiu ser. Um desejo do que lhe é ausente. A
potência de Cleópatra de Bressane vem de um rigor que não se basta pelo
seu conjunto de imagens belas ou pelo seu célebre repertório temático ou até mesmo
pelo toque do autor Bressane, já que outros filmes com a sua marca tipo Miramar
e em alguns momentos até mesmo O Mandarim, são totalmente apáticos e desprovidos
de vida. Existe nele uma energia que, se não violenta a percepção (não chega a
tanto), “nos dá a ver”, e isso é raro. Raro porque faz de imagens concretas, nada
subjetivistas, a modulação de sua força, de materialização de seu espírito poético.
Por isso, muitas vezes Cleópatra nos lembra alguns filmes mudos (Meliés)
ou aqueles que têm sua grandeza no uso mínimo (e essencial) das palavras e das
imagens (Dreyer). Aqui a luz de Walter Carvalho tem um papel primordial porque,
entre outras coisas, obedece ao projeto de um cineasta. Ou seja: é menos marcada
pela personalidade “WC”, que em muitos filmes parece francamente trabalhar de
maneira autônoma. Basta querer “ver” para entender que essa
lenda que os filmes de Júlio Bressane são prolixos é uma bobagem, retórica preguiçosa
de quem opta por entender as coisas através de “lentes mentais”. Já alguém que
nunca viu um filme na vida, e assista a Cleópatra, verá, essencialmente
(e mais do que em qualquer outro filme), qual a sua particularidade como forma
de expressão, desde um enquadramento que se sabe “composição”, passando pela disjunção
da imagem sonora e da visual e chegando à musicalidade da disposição das imagens.
É um filme didático (no bom sentido) que expõe de maneira clara “do que o cinema
é feito”. Cleópatra é feito com a câmera e depende da luz, simples assim.
É um filme de cinema exasperado em sua radicalidade, mas com serenidade. É um
filme que rejeita velhas categorias de pensamento, é um cinema do futuro: a vocação
de todos os grandes filmes em qualquer época. Maio
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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