Medos Privados em Lugares Públicos
(Coeurs), de Alain Resnais (França,
2006) por Cléber Eduardo
Uma obra-prima é razão com afeto “O
fílmico começa onde termina a linguagem”. A frase de Roland Barthes, em Cahiers
du Cinema, edição 222, julho de 1970, ecoa pelos olhos e olhares, pelas expressões
faciais e alterações corporais, pelos espaços e pelos cortes de Coeurs,
de Alain Resnais, o filme que, em julho de 2007, entre os títulos de circuito
comercial vistos esse ano, iguala-se a Mary, de Abel Ferrara, e a Still
Life, de Jia Zhang-Ke, na eleição estética e afetiva desse crítico. Como já
foi escrito de outra forma por Filipe Furtado na Paisà, em sua declaração afetiva
sobre o filme de Resnais, de alguma forma derivada do conceito mais geral de Barthes,
Coeurs é uma obra cujas precisas e audaciosas operações de construção cênica,
se transpostas para palavras, não dão conta sequer de uma fração das estratégias
e de seus efeitos. Se toda análise de cinema lida com um material móvel, movediço,
fluido, que dança em nossa memória,o desafio é mais agudo quando estamos diante
de uma obra-prima. E o que é uma obra-prima (chef d’oeuvre,
segundo os franceses)? A pergunta parece ter resposta óbvia, mas, diante de flexibilidade
com a qual o termo é usado tanto pelo senso comum como pelo senso mais crítico,
uma resposta exige um mínimo de definição, se não para uso geral, ao menos para
se esclarecer qual o sentido aqui empregado. Originalmente, na crítica de arte,
já remodelando o termo empregado antes entre artesões europeus em busca de ascensão
com suas obras (daí chef d’oeuvre), obra-prima é uma expressão artística
que alcança a perfeição, o equilíbrio de seus componentes, dentro de critérios
compartilhados por quem faz e quem julga. A mobilidade da arte e da crítica também
deslocou o termo de lugar e, tendo sobrevivido sem dificuldade às alterações conceituais
empreendidas pelas experiências modernas, as obras-primas passaram a ser identificadas
por critérios agora pessoais de cada crítico, sem mais consenso, pois as próprias
formas de julgar e analisar são distintas. Obra-prima tornou-se a obra diferenciada,
extraordinária, que se distingue das demais, talvez não pelas características,
mas pelo seleto lugar dela dentro da hierarquia do crítico. Entenda-se
o emprego do termo endereçado a Coeurs como constatação de uma irreprodutibilidade
da obra, de uma maneira única de mostrar as situações, de uma impossibilidade
de destrinchá-la em sucessivas análises, porque sempre haverá algo cuja expressão
em palavras seria limitada pela linguagem escrita, ou mesmo impossibilitada pelo
próprio estoque de combinações de sentidos nas palavras. Não a obra perfeita,
mas a intangível, aquela cujo estudo detido de suas operações não explicam seus
efeitos em nós, porque, nessa eleição (e é uma eleição), há algo de racional e
de afetivo. Será possível uma obra-prima que, em suas combinações, não produza
afeto em quem a eleja? Pois uma obra-prima, como empregada aqui, é uma operação
dupla: constatação de operações singulares na relação entre as imagens e delas
com os sons + os efeitos dessas operações singulares em nossa experiência de contato
com as imagens e sons. Basta
a seqüência em que Nicole (Laura Morante, de elegante beleza, sem igual no cinema
hoje) chega ao apartamento. Ouvimos o som de um relógio, seguido de uma aparente
subjetiva dela para Dan (Lambert Wilson), o marido desempregando, dormindo sentado
no sofá, o som do ronco dele, uma subjetiva com veloz zoom in em parte
da cama desfeita, até a explosão dela tirando o gorro, com impacto similar ao
do zoom na cama. Vemos na imagem a capacidade de apresentar uma situação
(o casamento de Dan e Nicole) já com sua síntese, operando a imagem para expressar
a turbulência ali naquele espaço e entre os dois, mas também para sentirmos algo
próximo dos sentimentos de Nicole, uma relação de efeitos inevitavelmente afetivos.
Recentemente, somente alguns planos de Um Casal Perfeito, de Nabuhiro Suwa,
chegaram a essa capacidade de síntese na introdução de um conflito. A
primeira imagem de Coeurs, um plano das nuvens e nas nuvens, que revela
um pouco e omite bastante, também tem esse efeito de síntese. Vemos apenas parte
da Eiffel e, ao se enxergar a cidade lá embaixo, ela está cinzenta e sem cores.
Essa imagem inicial apresenta dois dos muitos movimentos de Coeurs. Um
é a transição da neve que invade cada ambiente, a cada troca de unidade espacial,
para a luz incidindo nos lugares ao final, de maneira até hiper-evidente. Algo
se altera entre o primeiro e o último plano. O outro movimento contido nesse plano
inicial e encontrável no filme é a dramaturgia e a estética da “cortina de vidro”,
colocando sempre, na imagem e nos diálogos, um anteparo entre nós e os personagens,
ao mesmo tempo em que, como em uma cortina de vidro (elemento recorrente na cenografia
dos ambientes do filme), acreditamos enxergar algo que nos aproxima daquelas pessoas
em cena. Esse procedimento será repetidas vezes acionado nos diálogos, quando,
diante de uma pergunta mais cara à manutenção da privacidade, os personagens fecham
a guarda, mudam de assunto ou pedem para não se falar sobre aquilo. Essa mesma
operação de desnudamento e sombreamento da vida das pessoas, para além do que
é mostrado na imagem, vcremos na própria operação de tornar visível essas pessoas
e os lugares onde estão. Alain Resnais e o fotógrafo Eric Gautier criam uma espécie
de extra-campo dentro do campo ao freqüentemente tirarem o foco de uma das pessoas
em quadro para mantê-la apenas na outra, exercendo a política da omissão, escondendo
algo em um processo de aparente revelação, com uma mise-en-scène “cortina
de vidro”, que coloca um anteparo entre os personagens e nossos olhos. E
isso aumenta a distância na imagem entre eles, como se estivessem em lugares distintos,
distância essa que, quando encurtada, não é por conta de uma operação visual unificadora
(porque o diretor quer), mas porque os personagens parecem pedir o encurtamento.
Um raro momento no qual vemos uma fusão de sentimentos, convertida em uma comunicação/sintonia
de fato, que está expressa sobretudo na imagem, se dá na conversa final entre
Charlote (Sabine Azema) e Lionel (Pierre Arditi, impressionante pela discrição,
pela precisão de gestos, expressoões, movimentos), na sala/cozinha do apartamento
dele. Embora omita algo entre algumas revelações, a cena coloca os dois em um
mesmo canal de entendimento, com suas diferenças, sintonia essa visualizada na
alteração de registro visual, com a conversa saindo da sala dele e indo para a
neve, para o elemento que é comum a todos, para as dificuldades de superação das
mortes de uma vida, superação de nossos invernos, até o corte novamente para a
sala, de modo a transitar do inverno para outra estação mais luminosa. Tomemos
um caso dessa “cortina de vidro”: as poucas variações de uma tomada da cama do
pai de Lionel (o impressionante pela descrição Pierre Arditi), da qual vemos apenas
um pedaço, eventualmente com os pés do personagem entrevado em quadro. Toda a
intimidade de estar vendo a imagem de um quarto onde uma pessoa doente está habitando,
na tela, é toda complementada pelo som produzido fora do campo visual, porque
o campo visual apenas nos mostra uma parte do móvel, uma parte do corpo e a parte
de um quadro, com uma vaca e um cachorro em posições de alerta, aparentemente
estranhando um ao outro, em mais uma declaração de conflitos que em uma tentativa
de comunicação. Pois são declarações de conflito e tentativas de comunicação o
motor dos personagens. Nos dois casos, há fissuras. Não há comunicação. De novo,
na própria imagem. Quando Gaelle avista Dan no restaurante do hotel, onde haviam
marcado de almoçar, ela é ultrapassada por Nicole, que se senta ao lado de Dan,
seu noivo até 48h atrás. Essa imagem é suficiente para Gaelle, que havia conhecido
Dan na noite anterior, sair em disparada como se tivesse lidado com uma revelação
traumática. A conversa entre Dan e Nicole, porém, é tensa e suavemente ríspida.
Mas o potencial para o desentendimento supera contextos. Os
quatro homens e três mulheres em cena, contando aqui o pé de Arthur (voz de Claude
Rich), manifestam insatisfações variadas com suas vidas, em geral de natureza
afetiva. A exceção é Charlote, sempre sorridente, prestativa, bíblia à mão, cristianismo
na boca, um anjo da guarda empenhada em estimular a resistência à dor, à perda,
aos traumas, associando a vontade divina com a vontade de viver, sempre com a
disposição de superar as dificuldades. Charlote é a única personagem de quem não
vemos a casa. Ela está na imobiliária e no apartaamento de Lionel. Trabalha como
enfermeira no período noturno. Sempre agindo na casa dos outros ou para a casa
dos outros. Em nome dessa crença na potência da reciclagem das motivações para
a vida, ela nos oferta uma imagem ambígua (a câmera detida em seus olhares, após
a cena já acabar, nos informa algo, mas não nos informa tudo), não uma dupla identidade,
como em Crimes da Paixão, de Ken Russell, nem de estereotipo de fadinha
contemporânea, como em Amelie Poulin, de Jean Pierre Jeunet, mas de uma
natureza mais próxima da adolescente com fé febril de Menina Santa, de
Lucrecia Martel, que encontra no corpo um caminho para Deus. No
caso de Charlotte, porém, não é no corpo, mas na imagem, essa mediadora da comunicação,
que age onde as palavras e os gestos não se encontram mais à vontade. Mas a imagem
é mediadora apenas temporariamente, como um estímulo transitório, não como o mundo
para se habitar. A tevê será desligada na última imagem. Nenhum otimismo. Pelo
contrário. O tom é melancólico, os personagens estão sozinhos, silenciosos, depois
de tanto falarem uns com os outros sem necessariamente se entenderem. Ainda assim,
viveram as experiências mostradas nos filmes, começam novos ciclos, talvez renovados,
talvez para reproduzirem ciclos anteriores. Essas arestas
arejam o percurso e o comportamento de personagens que, pela própria dinâmica
de núcleos narrativos entrelaçados, mas não em comunicação necessariamente, a
princípio podem viver situações apenas para cumprir determinado esquema de roteiro,
com coincidências tornando ao mesmo tempo próximos e distantes, por exemplo, Dan
e Gaelle, que tem Thierry entre eles como um elo em algum momento próximo, mas
desconhecido. No entanto, Resnais, ao colocar os personagens para conversar, ao
nos aproximar com recato desses seres, emancipa a vida de seus esquemas dramáticos,
sem implodi-los, mas não nos impedindo de experimentarmos as emoções francas dos
personagens. O autor de 85 anos, mesmo salientando e assumindo seu olhar de observador
privilegiado (com a câmera no alto, com a câmera nos tetos), não enxerga tudo.
Nas nuvens, vemos pouco. No teto, vemos os corpos, os espaços, mas não os olhos,
o rosto, as expressões. Quando vemos de perto, o autor não enxerga mais, não sabe
mais, apenas supõe como nós. O esquematismo de Resnais permite a suas criações
andarem sem andador em Coeurs. editoria@revistacinetica.com.br
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