Medos Privados em Lugares Públicos (Coeurs),
de Alain Resnais (França, 2006)
por Francis Vogner dos Reis

O ritmo essencial

Em Medos Privados em Lugares Públicos, Alain Resnais parece ter muito a dizer a certas tendências do cinema contemporâneo. O cineasta traça aqui caminho oposto ao de um herdeiro, Wong Kar-Wai, que em seus últimos filmes optou por uma forma cada vez mais “inchada”, como se não conseguisse decidir o que é fundamental na composição de seus filmes. Aliás, os “filmes inchados” são um ponto de crise do cinema contemporâneo, que tem em grandes cineastas como Kar-Wai e Scorsese seus principais – e problemáticos – representantes.

Assim como Smoking/No Smoking de 1993, o novo filme de Resnais é adaptado de uma peça de Alan Ayckbourn e, essa origem teatral, é muito conveniente para Resnais estabelecer espaços de desenvolvimento da ação. O filme é inteiramente feito em estúdio, o que possibilita total controle do espaço e dos deslocamentos da câmera. Elege alguns núcleos de personagens que irão se cruzar. O primeiro diálogo do filme se dá dentro de um apartamento entre um corretor de imóveis e uma possível compradora. Ela reclama do espaço, acha o apartamento pequeno, pois o noivo quer um cômodo que possa lhe servir de escritório. Mais à frente, vemos esse casal em crise, ele é desempregado e constantemente bêbado. O corretor divide um apartamento com a irmã. Ambos são solteiros, ela arriscando encontros às escuras, ele interessado por uma funcionária da imobiliária, funcionária esta que à noite cuida do pai doente de um barman.

Descrevendo seu enredo de maneira mais detalhada, entrariam o vídeo pornô e a impossibilidade do laços permanentes entre as pessoas, teríamos um ótimo material para um desses filmes contemporâneos que diagnosticam na solidão, na rotina e na incomunicabilidade alguns sintomas patológicos do mundo moderno e etc, etc, etc. Até ai, Resnais está andando na mesma estrada que outros cineastas mais jovens, só que não esqueçamos que ele está na contramão. A relação com esses personagens é outra. Para Resnais, cinema não existe pra fazer lavagem cerebral ou pregar recalques psicologistas (seu filme Meu Tio da América é, senão, a grande sátira sobre isso), mas para entender as várias possibilidades desses personagens. E essas possibilidades se darão nos encontros e desencontros entre eles, que, são fundamentais para a construção e mudanças desses personagens. O cinema do autor (Marienbad, Meló) está estruturado em uma rede em que a ação e a transformação se dá nos encontros e desencontros.

O que impressiona em Medos Privados em Lugares Públicos é que o choque entre solidões cria uma disfunção do espaço (os apartamentos, os ambientes de trabalho) com os indivíduos: parece difícil dois corpos dividirem um espaço ao mesmo tempo, ou melhor, duas solidões se encontrarem. O apartamento do corretor tem paredes vazadas e seu escritório é organizado por divisórias transparentes; o espectador não tem acesso ao quarto do idoso doente, ao passo que a amplitude do bar, oficializa a separação entre um homem e uma mulher, frustrando ao mesmo tempo a possível união deste homem com outra.

Nesse ponto, Resnais explicíta a herança do texto original de Ayckbourn, que é teatral. A tradução da peça para o cinema busca conservar a sua essência e ao mesmo tempo transgredí-la como encenação, pois é patente que, ao procurar olhar o espaço cênico como um palco (uma das razões do filme ser em estúdio e ressaltar assim, a importância central das “paredes”), para criar um fluxo de ação que vaza essas paredes, parece atravessá-las, explicitar a geometria do espaço – nesse caso, cinematográfico, assim como fizeram Godard, Jerry Lewis e o mesmo Resnais. Hoje em dia, talvez, só De Palma e Jacques Rivette (de maneiras diferentes) realizam a mesma operação, com tamanha maestria.

Talvez esse diálogo com o teatro é que faça com que ele busque a “cena” de modo essencial e objetivo. Interessante que essa é uma preocupação cada vez mais presente também em seus colegas franceses de geração: Rohmer, Chabrol e Rivette. Buscar a ação pura (o movimento) e deixar de fora tudo que não interessa ou que venha a “inchá-lo”. O filme não parece leve, ele é leve. Coeurs (o econômico e belo título original) é um daqueles filmes que, mesmo que engenhosos e arrojados, são simples e fluídos. Resnais não faz uma obra mais modesta do que seu filme mais famoso O Ano Passado em Marienbad, mas sim, um trabalho bem lapidado que se interessa somente pelo essencial – algo que a literatura entendeu faz tempo. E como dizem muitos escritores, fazer um livro não é só escrever: é, sobretudo, saber cortar, excluir, apagar tudo que não interessa, ou tudo que pese demais, mesmo que belo.

Medos Privados em Lugares Públicos pode não ser o melhor trabalho de Resnais, mas, sem dúvida, é estimulante ver em pleno ano de 2007 um filme seu novinho em folha ser um dos trabalhos fundamentais de sua carreira. Manoel de Oliveira, Jean-Luc Godard, Eric Rohmer e Alain Resnais. É interessante notar como esses “velhinhos” conseguem a cada filme não só dar prosseguimento a um projeto estético pessoal, mas, ao mesmo tempo, ocupar espaço central no cinema contemporâneo. Todos têm tanto a dizer hoje quanto tinham décadas atrás: eles souberam mudar junto com o cinema – ou melhor, foram alguns dos protagonistas de uma arte com eterna abertura e permanente mudança.

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