conexão
crítica Conceição:
questão crítica por Cléber
Eduardo Parte 2: Conceição
na Contracampo, Cinética e Paisà
A
decisão de se deter a análise das reações a Conceição em quatro textos
segue critérios específicos. De todas as abordagens lidas essas foram as que mais
aderiram ao filme sem deixar de assumir essa adesão. Não são críticas travestidas
de visão objetiva, mas militâncias em favor, não do amigo Daniel Caetano, como
podem supor as mentalidades educadas na cultura do compadrio de interesses extra-afetivos,
mas uma militância em torno dos valores cinematográficos compartilhados com os
realizadores do filme – simplificadamente sintetizados em no mínimo três palavras
chaves: liberdade de construção, recusa ao cinema “bom burguês” e prazer em fazer
cinema – até como forma de honrar o dinheiro público na confecção. Na
Contracampo, “casa” de Daniel Caetano, foram duas as críticas: uma de Rodrigo
Oliveira, colocada no ar quando da primeira exibição do filme, na Mostra de Tiradentes
em janeiro de 2007, e outra de Luis Alberto Rocha Melo, disponibilizada na estréia
em julho. Rodrigo Oliveira questiona
um mito e um clichê relacionados à expectativa e à reação ao filme. O mito seria
anterior à primeira projeção em Tiradentes. Segundo Rodrigo, por ser uma produção
quase sem orçamento, de turma, era natural esperar um filme universitário tosco,
feito como exercício, mas sem maiores implicações. Nesse sentido, Conceição,
afirma Rodrigo, é uma enganação. Porque sua realização, segundo o crítico, é quase
virtuosa. Já o clichê contra o qual reage é aquele agendado para retornar aos
textos sempre que críticos e resenhistas se deparam com filmes em episódios ou
com mais de um diretor: “Pois
Conceição, tão modernamente, é um filme de projeto, que se dispõe a andar
por onde quer que seus diretores desejem mas que, ainda assim, nunca perde sua
consciência de todo, porque aqui coisas são, de fato, ditas, há uma vontade de
discurso que trará toda loucura explosiva para um certo caminho já muito bem traçado”,
afirma Rodrigo. O crítico ainda trabalha com o subtítulo,
Autor Bom é Autor Morto, diferenciando a morte dos autores na diegese,
ou mesmo como conceito (e aqui volto a mencionar Mallarmé, Barthes, Foucault e
Bellour) da noção de autoria, “presente no filme a partir de sua plataforma artística
consciente de sua produção”. A autoria está, unicamente, na instância narrativa.
Poder ser unitária ou múltipla. E uma dessas marcas autorais seria a relação entre
responsabilidade e insubordinação, um jogo de opostos que, para o crítico, não
permite ser visto como dialético, embora, no texto, não haja explicação para esse
veto à dialética. A crítica de Luis Alberto Rocha Melo, assumindo
o lugar de onde fala, declara sua intimidade com o projeto, fruto da proximidade
com os realizadores. Isso não diminui sua independência porque, uma vez assumida
sua posição, resta-nos seguir o caminho da adesão. Não uma crítica justa, mas
uma justa crítica. No entanto, em vez de enumerar adjetivos, contar bastidores
ou derramar-se em poesia confessional, Rocha Melo começa enumerando uma série
de diagnósticos gerais sobre o cinema brasileiro – o de hoje, o de ontem, o de
sempre. Começa por pegar pesado com os filmes empenhados
em dialogar com os jovens. Quem dialoga, constata, está fora. Precisa superar
a distância. E parte dessa distância, percebe, está na prisão à tradição. O cinema
brasileiro, afirma, é tradicional. Para se legitimar, é preciso pertencer a uma
tradição, atualizá-la. Mas como lidar com a tradição e com a juventude sem levar
em conta a tensão entre uma e outra? É uma das questões de Rocha Melo. A outra
é o resgate do cinema físico e de ação, sem psicologizar os personagens, sem procurar
matrizes para suas imaginações perturbadas – embora, ao falar em ausência de psicologização,
Rocha Melo talvez se afaste da tradição do cinema brasileiro, para seguir seu
raciocínio, que é pautada principalmente pela sociologização. Se tentasse se vincular
à tradição, as matrizes do imaginário dos personagens-diretores de Conceição
estariam menos em suas casas e mais nos efeitos de uma dada situação econômica
e social. Rocha Melo chama atenção para a necessidade de
se despir de profundidade para absorver a não profundidade de Conceição.
Portanto, ao contrário de quem vislumbra sentidos ocultos em sua narrativa, símbolos
a serem decodificadas e enigmas a serem resolvidos com alguma bula, o filme é
só superfície, constituído apenas de suas imagens e palavras. Cinema como arte
de evidências, do visível, do que está na tela, não fora dela. Isso não significa
que o fora da tela, em cinema, não esteja na tela de forma ficcionalizada. Rocha
Melo intui, por exemplo, que Conceição, filme de poesia, segundo ele, é
sobre o fim do mundo. O mundo a qual se refere é o mundo de forma ampla, aquele
fora da tela, mas o mundo no qual demonstrará os sinais desse fim, fim amplo,
do cinema inclusive, é o mundo diegético de Conceição. Busca no filme o
que o filme mostra do mundo. E o mundo de Conceição,
sua construção e seus efeitos, é de ordem sobrenatural, segundo Rocha Melo. Também
é um mundo a insinuar um caminho para reagir à melancolia histórica na qual seus
criadores tomaram a decisão de viver para o cinema (mas não necessariamente de
cinema). Conceição ganha nessa visão do crítico o estatuto de programa
estético reativo e ao mesmo tempo um documentário sobre a atitude de uma geração
de cinema nascida em um aborto – primeira metade dos 90. Na
Cinética, Francis Vogner dos Reis, antes de tratar do filme propriamente, assume
ser o seu, tanto quanto o de Rocha Melo, um olhar em sintonia com uma turma de
cinéfilos, alguns deles no exercício crítico na internet, que resgatam o sentimento,
à sua maneira, de pertencimento geracional: unidos inicialmente em torno do cinema,
mas estendendo essa aproximação às experiências pessoais, aos afetos, às trocas
de idéias, às ações em grupo. Mas esse espírito geracional
tão dado a trabalhos por convicção quanto a gestos de auto-celebração pela manutenção
ou resgate do espírito de grupo é também o de uma geração de cinema e de críticos
nascidos no bode do cinema brasileiro e contemporâneos do revigoramento da cinefilia,
possibilitada pela soma entre apetite voraz por imagens e novas formas de se ter
acesso a filmes em casa. Francis assume essa condição histórica de sua sensibilidade
e de seu olhar, algo que, para o leitor de Cinética e do extinto Cine Imperfeito
(nome tão expressivo do olhar de Francis), é uma postura bastante evidente nos
textos desse crítico de posições tão contundentes. Assim
como Rocha Melo, Francis vê Conceição, também, como parte de momento de
uma geração, em sua relação com seu contexto. Vejamos: “É um filme sobre a impossibilidade
de cinema no Brasil? Mais ou menos. É um filme sobre o fantasma da impossibilidade,
sobre fazer das tripas, coração. O filme acaba em samba, claro, o que é diferente
de acabar em pizza. Não é derrotista, não é desiludido e assim, o samba pede passagem
porque 'onde não tem samba, tem desilusão'." Filipe
Furtado também assume ter seu olhar situado dentro da turma e da geração, o que,
nos tantos anos em que o filme ficou parado, desde 2000, levou os mais próximos
de Daniel Caetano, ele incluído, a ter com Conceição uma relação mítica,
como escreveu Rodrigo Oliveira – mas sempre um mito vinculado a um invólucro de
maldito. Na tela, a expectativa de maldição, porém, se desfaz. Aproximando-se
do filme em termos comparativos com Saneamento Básico, de Jorge Furtado
(como fez César Zamberlan em Cinequanon), Filipe Furtado (que nada tem a ver com
Jorge) considera Conceição movido pela paixão pelo próprio cinema, pela
filmagem, pela mise-en-scène, pela relação entre quem filma e o que é filmado,
a base da tão discutida questão do como se filma. Peço a
licença para colocar uma pequena cereja no bolo. Depois de duas sessões e meia
do filme em menos de um ano, depois de ler quase tudo sobre o filme nos últimos
dias, tendo a ver Conceição como um diagnóstico, sim, sobre um dos males
crônicos e orgânicos do cinema brasileiro: a morte pela imaginação. Para aquela
turma de jovens candidatos a cineastas do filme, imaginar filmes e a possibilidade
de realizá-los é um suicídio, porque eles não têm controle sobre a própria imaginação,
porque a imaginação acaba por mata-los. E não é de imaginação que morrem nossos
grandes autores? Não é sem ela que os pequenos estão vivos? Imaginação é um enorme
risco no cinema feito no Brasil. Conceição e seus realizadores sabem disso
na pele. Ou melhor, na película. editoria@revistacinetica.com.br |