edição especial curtas brasileiros
2009 Dois
homens com a câmera por
Eduardo Valente
Confessionário, de
Leonardo Sette (Pernambuco, 2009); e De Volta ao Quarto 66, de Gustavo Spolidoro
(Rio Grande do Sul, 2009)
Tanto
De Volta ao Quarto 666 quanto Confessionário são filmes quase totalmente
compostos por um longo plano em que um homem fala para uma câmera, de maneira
praticamente ininterrupta (e cada um destes “quase” e “praticamente” são determinantes
das singularidades de cada filme). No entanto, com tudo que os assemelha neste
aspecto de estrutura básica de produção, não poderiam ser filmes mais diferentes
em todos os outros elementos que os compõem – desde aqueles efetivamente constituidores
do que são (suas origens como projetos ou seus objetivos como filmes) até algumas
curiosidades que os aproximam justamente nas oposições (por exemplo, o fato de
que num deles temos Wim Wenders, um estrangeiro, falando sua própria língua –
alemão – no Brasil; no outro temos o Padre Silvano, um italiano que fala português
em sua própria terra). Passar por algumas destas diferenças e especificidades,
porém, é falar por meio delas daquilo que faz dos dois filmes obras absolutamente
instigantes no panorama do cinema (curto, brasileiro, mas não só) hoje. *
* * Talvez
a maior distância entre os dois filmes seja, exatamente, a de suas gêneses. De Volta ao Quarto 666 é algo raro no panorama
brasileiro – e ainda mais no de curtas metragens: um “filme de encomenda”. Ele
é parte de um conjunto de trabalhos de diferentes metragens produzidos pela produtora
gaúcha V2 Cinema, dentro de um projeto maior chamado Fronteiras do Pensamento,
no qual vários nomes (nacionais e internacionais) das artes, da filosofia
e de várias outras especialidades passou pela cidade de Porto Alegre para uma
série de conferências. A produtora aproveitou-se então da presença de figuras
como o próprio Wim Wenders, David Lynch, Bob Wilson, Fernando Arrabal, Edgar Morin,
Philip Glass, Simon Schama, entre outros, para propor a vários realizadores gaúchos
que produzissem filmes usando de alguma maneira a palavra e/ou a figura destas
pessoas. Dentro da série há outros filmes com alguma força, mas De Volta ao Quarto 666 é o único que realmente se impõe para além
de seu interesse em torno da teoria do que ali é dito ou da força das figuras
entrevistadas/filmadas. Gustavo
Spolidoro e seus colaboradores partiram de uma idéia até simples, mas engenhosa
em seu projeto: entrevistar num quarto de hotel Wim Wenders, que havia realizado
o filme Quarto 666 (também sob encomenda,
diga-se) em Cannes, em 1982, perguntando a vários dos principais cineastas do
mundo sobre o futuro do cinema – ou melhor, a morte do cinema (uma versão curta
do filme de Wenders pode ser vista aqui).
Mais do que entrevistar, porém, os realizadores tentam aproximadamente reproduzir,
neste quarto em Porto Alegre, tanto o enquadramento usado por Wenders então, como
seu dispositivo principal: uma câmera ligada, sem operador, e a liberdade para
o entrevistado falar por quanto tempo achasse interessante a partir desse tema
bastante amplo (o “futuro do cinema”). Até aí, o que Spolidoro tinha em mãos era
uma idéia esperta e uma boa sacada de linguagem – algo que ele já demonstrou em
filmes como o curta Velinhas ou o longa
Ainda Orangotangos ser capaz de transformar
em filmes, mas que às vezes se esgotam e giram em torno destas premissas apenas.
Em De Volta ao Quarto 666, porém, seu
filme consegue escapar destes limites. O
primeiro vetor de força é mesmo o fato de que, ao relembrar um filme que foi feito
num momento em que o cinema se via sob a sombra das novas tecnologias (então encarnadas
no vídeo e na TV), o curta usa exatamente das novas tecnologias, em suas formas
atuais. E a esperteza de Wenders é a de perceber que este é o verdadeiro grande
tema em questão na sua performance, fazendo dele o
centro de seu discurso. Nisso, Spolidoro cria um destes acertos a partir do que
podia ser só uma sacada, ao colocar em cena um laptop no mesmo lugar do quadro
onde, no filme de 82, Wenders deixava uma TV ligada. Esta atualização através
de um objeto deixa de ser só uma idéia esperta no momento em que Wenders interage
com o computador, “ressuscitando” nele o seu próprio filme – e, através deste
gesto, deixando claro que a relação do cinema com o computador é outra, ativa,
em tudo distinta do que era com a TV (onde a única ação possível era desligar
o aparelho, como fazia Herzog no filme de 82). Outra discreta presença da nova
realidade das ferramentas de cinema é percebida quando uma das primeiras coisas
que Wenders diz no filme é “Porto Alegre”, enquanto vemos a cidade pela janela
– enquanto no filme de 82, Antonioni dizia para vermos a cidade lá fora pela janela,
algo que não podíamos fazer porque a película 16mm não conseguia ser exposta ao
mesmo tempo para a luz dentro do quarto e a externa, e na janela só se podia ver
um enorme clarão branco. Curiosamente,
ao atualizar o seu discurso em relação às novas tecnologias, Wenders deixa escapar
um ato falho um tanto desapercebido: ele diz que hoje há uma grande animação com
as possibilidades do cinema, enquanto na época do seu filme o clima era de desânimo.
Só que quem vir o filme de Wenders perceberá que desânimo é algo que pode definir
plenamente apenas o gesto inicial de criação (que era dele) e a sua própria participação
no filme. De maneiras bem distintas, figuras como Spielberg, Godard, Herzog, Paul
Morrissey (e não só Antonioni, que o próprio Wenders cita agora como uma exceção
na época) são tudo menos desanimados nos seus discursos em 82. Reconhecem que
o cinema mudava e nunca mais seria o mesmo, mas não viam isso com nenhum desânimo.
O que a forma de Wenders olhar para o filme que fez em 82 nos revela é a velha
lição de que há uma grande diferença entre os filmes que os diretores querem fazer,
e aqueles que efetivamente fazem. Wenders saiu para fazer, na época, um filme
sobre “a morte do cinema”, e continua achando que foi o que fez. Mas o filme,
e seus personagens, nos dizem outra coisa bem diferente disso. Mas,
a confusão talvez seja apenas natural, afinal já se passaram mais de 25 anos,
certo? E é por coisas assim que De Volta
ao Quarto 666 é, de fato, um filme sobre a inexorável passagem do tempo –
algo que Spolidoro incorpora com grande força em seu filme através do uso das
fusões que permitem que Wenders “divida” o espaço da tela (e do quarto) com os
já mortos Antonioni e Fassbinder, mas também e principalmente com a sua própria
imagem de 25 anos atrás. Nesse sentido, não deixa de ser um tanto triste que aquele
rapaz pessimista de 1982, que queria decretar a morte do cinema, movido por essa
angústia talvez, estivesse fazendo alguns dos filmes mais essenciais do seu momento
histórico – enquanto este senhor animado com as perspectivas do cinema que vemos
em 2009 é hoje pouco mais do que uma sombra do cineasta que já foi. O tempo passou,
e se, segundo o discurso de Wenders, foi gentil com as expectativas do futuro,
foi bastante cruel com o próprio Wenders, que parece hoje um tanto perdido como
cineasta – digamos que quase como um estrangeiro num quarto de hotel em uma cidade
desconhecida. *
* * Passagem
do tempo também é parte central do que faz a força de Confessionário, de Leonardo Sette. O peso da memória parece esmagar
cada frase saída da boca do Padre Silvano, cujas palavras não poderiam nunca ser
as mesmas sem os mais de 50 anos que separam os episódios que ele narra do momento
em que ele fala para a câmera de Leonardo Sette. Ou talvez melhor fosse dizer
que ele fala para o próprio Leonardo Sette? Nunca saberemos, e isso é parte do
que faz o filme tão intrigante, o quanto de consciência de performance para uma
câmera há nos relatos de Silvano – afinal, ao contrário de Wim Wenders e sua extrema
destreza frente a uma câmera (até por conhecer bastante o olhar de quem está por
detrás dela), nada indica que o padre tenha um total controle da persona que assume
ao narrar. Mas,
ao mesmo tempo, será que isso importa para o filme que vemos? Afinal, se a “confissão”
de Silvano se dá para o diretor com quem estabeleceu uma relação pessoal fora
daquela filmagem ou se ela se dá para a câmera, isso de fato não muda em nada
a realidade de que ali, na tela, se estabelece sim uma performance, e é da força
desta que advém todo o poder da imagem do filme. Esta performance tem muitas nuances
e facetas, cada uma delas fascinante por si: há desde as questões políticas, religiosas
e pessoais envolvidas no que narra o padre; a peculiaridade de seu português estrangeirado;
a sua capacidade de narrador (talvez mais adequado seja falar em orador). Frente
a isso tudo, o grande posicionamento assumido pelo diretor é justamente o silêncio
– além, é claro, da opção precisa pela duração do plano, já que o relato é tão
mais forte quanto o próprio entrevistado vai sentindo o peso das suas palavras/lembranças.
A postura silenciosa do diretor fora do quadro, embora possa certamente ter muito
de alguém tão hipnotizado por aquelas palavras quanto nós ficamos, parece incitar
mais e mais as palavras que saem da boca do padre e que, para inverter o velho
clichê, valem por mil imagens. Se
é do depoimento do padre que se faz o cerne de tudo que Confessionário
atinge como efeito, não se deve porém desprezar a importância do seu começo e
do seu final, nos quais deixa transparecer parte das regras do jogo desta conversa,
e também a materialidade da mesma (encarnada na fita que termina, e que interrompe
o discurso). Há nessa interrupção uma grande beleza, seja na singela pergunta
do padre se aquilo tudo que ele diz tem mesmo algo de interessante para quem ouve,
seja na sua levantada e saída até o fundo do quadro, para fumar um cigarro no
lado de fora da sala. Mas, além disso, são momentos que colocam a câmera em primeiro
plano, e a presença dela ali em questão. O que afinal busca ali esta câmera que
ouve esta “confissão” às avessas, como afirma o título (que coloca uma série de
outras questões, como qual o pecado narrado)? Saber
a resposta não é essencial, mas vale dizer que em debates depois da exibição do
filme, Leo Sette conta que na verdade este filme nasce de um acaso (e nisso se
aproximaria de seu outro curta em 35mm, Ocidente),
já que ele estava ali para conversar com o padre Silvano sobre outros temas –
que seriam explorados nas fitas seguintes. Ouvindo a conversa daquela fita depois,
em casa, é que ele se dá conta da força autônoma daquele trecho. Portanto, é um
filme que surge a posteriori, e às custas
de mais nada do que a viagem e a presença do diretor com sua câmera ali naquele
lugar – sendo assim o exato oposto da encomenda que leva ao filme de Spolidoro.
E aí é que ver estes dois filmes em conjunto, percebendo que a sua existência
em grande parte só foi permitida pelas possibilidades abertas em diferentes níveis
pelo equipamento digital, talvez nos ajude mesmo a partilhar parte do entusiasmo
quase naif e juvenil do senhor Wenders ao falar
das novas tecnologias e do futuro do cinema. Março
de 2010
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