Um Conto de Natal (Un Conte de Noel),
de Arnaud Despleschin (França, 2008)
por Eduardo Valente

Auto-indulgência à francesa

É curioso perceber como o cinema pode ser uma arte misteriosa, e que a posição do crítico frente a ele muitas vezes tem a ver com um determinado repertório e a maneira como vamos sendo "expostos" a ele. Outro dia mesmo, por exemplo, o Reis e Rainha de Arnaud Despleschin nos surgia como uma revelação (sendo o segundo filme dele que eu vi, por exemplo, me faltando os quatro primeiros), ao montar uma dramaturgia do descontrole e do afeto, onde o confronto e o carinho (entre personagens, mas entre filme e personagem também). pareciam complementares como em poucos lugares do cinema. Mais: era um filme que se dispunha a abraçar o mundo todo (basta ver o seu final no Museu do Homem), mas que conseguia fazê-lo parecendo não tentar mais que dar pequenos passos nele.

Pois, menos de três anos depois, nos chega Um Conto de Natal, e de repente nele só conseguimos ver um cineasta que parece mais interessado em si mesmo e sua forma de filmar do que naquilo que de fato filma. As falibilidades e imperfeições da alma humana, e especialmente a sua organização social na família, continuam ali, sempre caras a Arnaud Despleschin. Mas o fato é que Um Conto de Natal pode no máximo ser descrito como um Reis e Rainha que perdeu as estribeiras (e é fato que alguns acham que este já não tinha muitas estribeiras, mas continuo discordando).

É fato que há uma inversão de foco, pois aquele que era um filme sobre a família que escolhemos construir pelos afetos, independente do sangue, e que se torna aqui uma questão da família de sangue (elemento fisicamente bastante forte no filme, aliás) na qual precisamos conviver, mesmo nos desafetos. Mas a principal diferença é que aquilo que ainda tinha considerável frescor em Reis e Rainha, se torna aqui formulaico ao extremo - ao ponto de algumas vezes Um Conto de Natal parecer um Pequena Miss Sunshine de autor francês. O elogio da generosidade desbragada e do “disfuncional como modelo” se torna auto-consciente de uma maneira francamente irritante, num formato incrivelmente over: Não só por tratar-se de um filme de duas horas e meia, mas por fazer questão de explorar uma tal quantidade de conflitos e conscientemente expor um formato entre o teatro de boulevard e a tragédia grega (além de toques de Tchekov – como se pode ver, teatro é algo bem importante para o filme). Não se fala só muito no filme, se fala demais: todos os personagens discutem com um tal conhecimento de causa seus problemas e traumas, que resta ao espectador pouco mais do que ser afogado na auto-indulgência generalizada, onde o elogio da "falha" se torna banal justamente por parecer forçado, e montado com enorme esforco artístico.

Maio de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


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