ensaios
Imagens da Copa
por Cléber Eduardo
1. Transmissão de futebol:
uma transmissão sem futebol
Direto ao ponto. O que vemos na TV, quando acompanhamos
a transmissão de uma partida de futebol (seja qual for), não é
o jogo, mas somente a movimentação em torno da bola. Não se trata
sequer de vermos as jogadas, como a princípio podemos supor, mas
tão e somente a trajetória da esfera. Porque tanto os jogos quanto
as jogadas, mais os jogos do que as jogadas, são constituídos
também por outras movimentações, em geral ignoradas pelas câmeras.
Portanto, a transmissão apenas transmite a si mesma, sem futebol.
Porque uma partida de futebol está centrada na forma dos jogadores
dos dois lados se situarem no espaço. O futebol não é jogado apenas
com a bola, mas com deslocamentos e posicionamentos, que determinam
outros deslocamentos e a trajetória da bola. Não é um esporte
individual ou de detalhes isolados, mas uma soma de relações em
que o mais importante, mais que a bola, é como os corpos ocupam
os metros quadrados. No entanto, para a TV, só existe a bola.
Seria o equivalente a filmar uma cena de ficção dramática, tendo
quatro atores no mesmo espaço em uma situação de risco de vida
para todos, e manter a câmera somente no rosto de um ator, sem
situar esse ator em relação aos outros três. Nessa mesma cena,
esse mesmo ator com o rosto filmado pega uma arma na calça, mas
não temos acesso à imagem. A estratégia de se acompanhar apenas
a bola na televisão nos deixa na ignorância e na cegueira em relação
ao jogo jogado sem a mesma bola.
As partidas da Copa do Mundo de 2010 parecem menos
cortadas (de plano aberto para detalhes). A câmera nos dá 1/6
do campo, com no máximo 7 ou 8 jogadores dos 22 na partida, sempre
nas proximidades da bola. Esse número tende a aumentar quando
uma das áreas é filmada, porque a defesa do time atacado costuma
ser concentrar ali. Essa estratégia, embora nos livre dos cortes
para dentro do campo, que nada nos dá a ver em detalhe da jogada
a não ser o próprio corte para o plano-detalhe (mas de que?),
não atenua muito. Algumas jogadas importantes só se tornam visíveis
se, no intervalo, o computador congelar os posicionamentos dos
atletas em lances específicos. Esse congelamento, porém, não é
mais o jogo. É a transmissão. Podemos insistir, a partir disso,
que em uma transmissão vemos apenas a transmissão. O jogo é outra
coisa, mais dialógico e dialético, não o reducionismo do quadro.
Não deixa de ser curioso que, se na retórica publicitária da transmissão,
vende-se o ver melhor (em detalhes e em câmera lenta), na prática
ao vivo nos entregam uma visão limitada. Ver melhor para essa
retórica absorvida e reproduzida por tantos é ver mais de perto.
Quem vê muito de perto, porém, vê muito pouco. Esse culto de uma
visão de lupa e de zoom de Google Maps é típica desse momento
histórico de valorização do detalhe e de desconfianças das relações
entre detalhes. Não se quer um espaço coeso em sua multiplicidade
de camadas e fragmentos. A cultura é do fragmento nele mesmo.
Daí a necessidade de se mostrar um drible ou um choque como se
fosse uma espiada para um acontecimento isolado e quase secreto
(pela forma de ser reprisado).
Na fase do mata-mata da Copa
2010, aumentaram os cortes para dentro do campo, para imagens
em detalhes, com duração mínima, sem duração sequer para nos transmitir
esse efeito do detalhe. Para que esses cortes? Se eles não nos
ajudam a ver o jogo melhor, sequer a riqueza e a minúcia da jogada,
por que essa insistência na decupagem ao vivo? Suponho que é,
como em muitas ficções, para agilizar a transmissão. A cadência
do futebol amenizaria a agilidade necessária para um fluxo das
imagens e para a manutenção da dramaturgia futebolística. As próprias
emissoras e comentaristas, na Copa, consideram uma revolução os
detalhes. Parece que, com eles, descobrimos o jogo. É o contrário
disso. Com esses detalhes, sejam os de verificação vigilante das
dúvidas de arbitragem, sejam os de dissecação da jogada, o jogo
está muito distante. O espetáculo deixa de estar com os jogadores
e passa a estar com a tecnologia de transmissão. Talvez seja uma
saída para quem deseja o show de imagens. Quem deseja ver jogo
pela TV, porém, ficará apenas na vontade.
* * *
2. O luto na lente
Momentos após o apito final de Brasil 1 x 2 Holanda,
antes mesmo de falar com outra pessoa, Julio Cesar
estava diante da câmera da Globo. A respiração era de quem
havia jogado no ataque e corrido a partida inteira. No entanto,
é goleiro. Diante da pergunta do repórter, ficou sem palavras,
tentando tirar a luva. Foram 10 segundos de silêncio. O repórter
decide abandonar a tentativa de ouvi-lo, agradece o goleiro por
ter parado ali e, antes da transmissão cortar, Julio Cesar pede
para falar. Demora mais um pouco, enxuga o rosto, olha para cima.
Encerrada essa expressão da emoção pela derrota, que manifesta
pelo rosto, pelas ações do corpo e pelo silêncio, Julio faz uma
análise sóbria, racional, sem a descarga de abalo da imagem. Com
30 segundos de fala, ao mencionar a confiança do torcedor brasileiro
na seleção, ele para com as palavras e sopra em busca de alguma
frase.
Essa talvez seja a grande imagem da derrota e,
ao mesmo tempo, a imagem da dignidade diante da perda. A
emoção evidenciada por Julio Cesar é uma emoção "apesar da
câmera", já que, diante da câmera, como deve ter aprendido
Dunga (depois dos palavrões entre os dentes dirigidos ao repórter
Alex Escobar em uma coletiva durante a Copa), existe um protocolo
de comportamento regido pelo auto-controle. Se há auto-controle,
mesmo em uma situação de estresse, então, consequentemente, a
câmera reivindica uma encenação. Encenar não é mentir ou falsear,
mas encontrar a expressão de algo em evidências (visuais ou verbais).
Encenar é adotar a linguagem da câmera, que é a linguagem pública,
para outros, não para sua roda de colegas de times. O que aconteceu
após o jogo, no hotel, entre os atletas e a comissão técnica,
por exemplo, não é uma expressão para as câmeras. É de outro tipo.
A emoção de Julio Cesar, portanto, é apesar das
câmeras, porque a emoção ameaça o auto-controle do goleiro e promove
uma fissura no protocolo da entrevista ao vivo, mas também é uma
emoção para as câmeras, já que sua expressão, em última instância,
é uma emoção para ser vista e sentida pelo público, para ser a
expressão de como os brasileiros diante da TV deveriam sentir
a derrota: é a mise-en-scène e o discurso do derrotado
com espírito de dignidade. Não se trata de ver na encenação do
goleiro uma mentira em relação a seus sentimentos: os sentimentos
estão lá, mas o que vemos, em vez de sentimentos, é a forma de
expressá-los. Não é uma expressão para a esposa, para a mãe, para
o colega trapalhão e mau caráter Felipe Melo, mas para a câmera
da Rede Globo. É uma emoção global – não apenas no sentido restrito
de uma emoção para a emissora, mas, também, no sentido de uma
emoção para todo o globo.
Já a Globo, que estava pronta para captar a fala
de alguém imediatamente após a derrota, quase se sabota. Quando
o repórter ameaça propor um corte ao vivo no momento de silêncio
de Julio Cesar, em vez de explorar esse momento de abalo, mais
expressivo que as banalidades ditas pelo goleiro, esse repórter
mostra a burrice da televisão diante das situações-limites. O
que se quer é uma palavra, uma explicação, a voz de alguém, como
se a palavra fosse documento, atestado. O que não se quer, o que
se evita, é o silêncio, a incapacidade de se falar algo – ou,
como prefiro, a expressão da dificuldade se organizar algo em
linguagem verbal. E para quê? A encenação do goleiro era mais
verdadeira do que a análise e a decepção dele manifestada por
suas frases.
Julho de 2010
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