in loco - cobertura do Festival do Rio

Coração, Batendo no Escuro (Yamiutsu Shinzo),
de Shunichi Nagasaki (Japão, 2005)
por Eduardo Valente

Muito prazer, sr. Nagasaki

É curioso o processo de chegada da obra de alguns cineastas ao conhecimento da platéia brasileira. No mesmo Festival do Rio que praticamente “apresenta” aos cariocas a obra de Alejandro Jodorwsky e David Perlov (pelo menos de maneira mais ampla), chega este filme do japonês Shunichi Nagasaki. Por causa destas condições da “seleção natural” que os festivais do mundo fazem de quais cineastas circulam e quais não, vemos este filme mais recente de Nagasaki como se fosse o primeiro – o que está longe de ser verdade.

Cineasta que filma há mais de 30 anos, Nagasaki tem uma das carreiras mais prolíficas do mundo neste período: este é seu vigésimo-segundo longa, tendo alternado filmes comerciais em 35mm com trabalhos feitos em vídeo, Super-8 e 16mm (só em 1982 fez três longas em diferentes formatos). Por isso, ver este filme como um primeiro não deixa de ser uma forma equivocada de apreender seu trabalho, quando com outros cineastas estamos sempre comparando seus novos filmes ao seu trabalho anterior (vale mencionar aqui que Nagasaki participou bastante do Festival de Roterdã, um dos que mais marca o circuito mundial pela sua ousadia na selação, tendo recebido este ano uma retrospectiva de sua obra – o que certamente explica a maior circulação do novo filme).

Esta introdução se faz especialmente necessária pelas características peculiares deste filme: Coração, Batendo no Escuro tem o mesmo nome de um longa em Super-8 que Nagasaki realizou em 1980, e que é um marco do cinema da geração de jovens cineastas japoneses daquele período. Pois este novo filme propõe uma curiosíssima relação com o filme anterior: ao mesmo tempo em que os atores do filme de 25 anos atrás surgem em cena interpretando seus mesmos personagens, dois jovens atores interpretam um casal que passa pela mesma situação da do filme original. Como se não bastasse esta mistura inédita de remake e continuação num mesmo filme, Nagasaki incorpora ainda uma terceira dimensão, a do making of deste trabalho peculiar, começando o filme justamente com as discussões que levam à realização do projeto – e que voltam ao longo do filme.

Neste jogo instigante de camadas narrativas e de representação, parte da dificuldade que o filme parece sofrer com sua estruturação de roteiro (que, convenhamos, não era desafio de simples solução) tem a ver com o desconhecimento que Nagasaki parece supor que a maioria dos espectadores do mundo teria da obra original (como, aliás, seria nosso caso). Por causa disso, ele opta por uma voz over que introduz e explica o começo do processo de realização do novo trabalho, e insiste um pouco demais no artifício de mostra de novo as cenas do filme de 1980 que ele reencena (não sem alterações) com o casal jovem contemporâneo. Na primeira metade do filme, as transições entre o material de 1980, o jovem casal de 2005, o velho casal de 2005 e o making of do filme não se dão sem alguma dureza.

No entanto, o espectador que se permitir o esforço de insistir com o filme será premiado pela segunda metade, onde a partir do encontro do casal jovem e velho de 2005, o filme ganha verdadeira força poética. Dali para a frente, tudo parece funcionar: as questões fantasmáticas da relação entre atores e personagens, a discussão moral sobre os atos dos personagens e a possibilidade/necessidade do perdão, os jogos entre memória e presente, e principalmente a superposição de materiais entre o filme antigo e o novo. Ali sim fica a curiosidade em poder ver os filmes anteriores de Shunichi Nagasaki (especialmente o Coração, Batendo no Escuro original, que em todas as cenas que vemos parece especialmente interessante), e assim poder entender melhor este tardio filme de um cineasta tão longevo.


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