in loco - cobertura dos festivais
Cores, de Francisco Garcia (Brasil, 2012)
por Raul Arthuso

Fast Food Nation

Após uma pequena apresentação de Luca (Pedro di Pietro), Luiz (Acauã Sol) e Luara (Simone Iliescu) como escopos diferentes de um conjunto (e a música cumpre a função de estabelecer rapidamente suas diferenças), vemos um pronunciamento do presidente Lula na televisão em que ele comemora o desenvolvimento do país - enquanto, no contracampo, Luca assiste TV sem esboçar nenhuma reação, mostrando profundo desprezo (ou seria desinteresse?) pelo discurso. Está feito: Cores busca retratar uma geração: vai falar dos jovens adultos - por volta dos trinta anos -  vivendo numa grande cidade durante o governo Lula.

O cinema é uma das armas mais poderosas para dar a ver a relação entre o homem e seu lugar, a busca por entender um complexo comportamento humano e social. Esse simples campo e contracampo no início de Cores já estabelece a relação do seu mundo com as personagens, que vai ressoar durante o resto do filme. Enquanto o desenvolvimento do país e a melhora de vida parecem passar ao largo do trio pelo qual o filme se interessa, os três protagonistas respondem com desprezo e vacuidade. Alguns instantes depois, Luiz assiste o jogo de seu time de futebol pela TV e, mesmo após sofrer um gol, ele é incapaz de esboçar reação que demonstre suas paixões pelo que passa diante de seus olhos. É essa passividade que se traveste de melancolia - Luca, Luiz e Luara reclamam entre si de tudo ser uma merda - que será encenada por Francisco Garcia. Ou como diz uma personagem mais velha para Luara em dado momento "O sonho acabou".

Isso não é novo. Um certo espírito do cinema indie americano dos anos 1980 é perceptível em todo o filme, em especial Jim Jarmusch – não apenas pelo cartaz de Stranger than Paradise na parede do estúdio de Luca, ou pelo trio desgarrado que lembra Down by Law, ou mesmo o preto e branco em cinemascope de tons semelhantes ao do cineasta americano. Há uma importação, em certo sentido, da idéia de um jogo perdido já de saída, um mundo em que os idealismos não se sustentam na medida em que cada novo dia é um dia a menos rumo ao fim.

A melancolia, fruto de uma defasagem entre o mundo ideal e o mundo possível - encarnada em Jarmusch na música e na presença física de Tom Waitts em alguns filmes - se materializa em Cores no seu gosto pelo vintage da música eletropop tocada em fitas cassetes, na câmera polaróide e no sonho de viagem para Bariloche. Em um ponto do filme, Luca toca uma música em cassete e Luara se balança, esboçando uma dança estranha, enquanto Luca e Luiz a observam, hipnotizados. É impossível não lembrar das personagens impassíveis de Jim Jarmusch e de um traço de cena a la Simple Men, de Hal Hartley. Porém, essa vacuidade e apatia de Luca, Luiz e Luara - interessante pensar na semelhança dos nomes como uma forma de esvaziá-los ainda mais - parece fruto exatamente dessa importação do espírito indie. Não que essa geração não seja apática e não responda ao mundo como fazem os protagonistas de Cores. Acontece que é marcante a ressonância de idéias e estímulos que alianham Cores aos filmes da geração perdida e da geração apatia, como a música, o acting esvaziado, o clima pop depressivo.

Nesse sentido, o filme de Francisco Garcia está trinta anos atrasado em relação a Stranger than Paradise e dez anos atrás de Millenium Mambo. Embora isso não seja a tragédia de Cores, é em parte o que faz do encontro das personagens com o mundo uma relação necessariamente formalista. Se os discursos políticos, o futebol e o dilúvio que atinge São Paulo são incapazes de tirar as personagens de seu torpor, o gesto simbólico de Luara em fotografar com sua polaróide aviões que pousam no aeroporto vizinho à sua casa, suas pernas em perspectiva ou os amigos com as cabeças juntas formando um fractal mal ajambrado de Busby Berkeley dá a impressão de um desejo metafísico em achar um mundo acessível dentro do mundo factual que passa pela construção formal - daí esse jeito indie, os objetos vintage, o excesso de figuras geométricas nas roupas, nos tapetes e nos tecidos que aparecem no filme.

Esse desejo de formalizar o mundo, que inclui vontade de pose, isso sim é a verdadeira tragédia de Cores. Suas personagens estão descoladas do mundo e o filme só é capaz de encontrar esse descolamento, não a relação que existe neste descolamento. Evidencia isso o grande leitmotif do filme: tableau das personagens enfileiradas enquanto algo acontece no quadro, alheio a eles e sem incidir, senão como efeito, no plano. No mais significativo deles, Luca, Luara e Luiz comem fast food, impassíveis, sentados na varanda, enquanto aviões circulam no fundo quadro. Um pouco como esse procedimento de tableau marca, a forma de cada objeto é levada ao máximo possível, para que ele seja filtrado na apatia pop do fast food cinéfilo. O mundo, o tempo e a geração que Cores se propõe a retratar têm sua acessibilidade explicada pelo gesto de se fazer um filme com esse nome, em preto e branco: é possível ver suas texturas, linhas e formas; mas seu colorido, só imaginado.

Novembro de 2012

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