ensaios
Rituais, fanfarras e aparições
Corpo Presente, de Marcelo Pedroso
por Luiz Soares Júnior
“O filme... liberta
a arte barroca de sua catalepsia convulsiva. Pela primeira vez,
a imagem das coisas é também a imagem de sua duração
e uma espécie de múmia da sua transformação
( ...et comme la momie du changement)”.
André Bazin
“O gesto é interrupção:
enquanto ‘falso movimento’, ele dissipa o movimento
e a imagem. Suspende a narrativa. (...) O gesto é potência
de repetição, pois não possui nada de fortuito,
de natural. A repetição dessacraliza a imagem, esgota
o espetacular e restringe o imaginário”.
Elizabeth Boyer, "Os Gestos no Cinema".
“Mostrem que estão
mostrando”.
Bertold Brecht, "Escritos sobre
o Teatro".
Enfatiza-se com freqüência uma certa interdependência
entre cinema clássico e narração, ou ação
narrativa; o que se pensa aí é uma subordinação
do plano – entendido como mero elo de uma cadeia causal
– à seqüência, da figura ao drama, da
manifestação ao estudo de caráter ou Hubrys
aventuresca da subjetividade em confronto com o mundo. Mas há
um equívoco, já denunciado por Nietzsche, que consiste
em confundir ação com drama –
movimento ascendente e beligerante que converte o plano no locus
de uma concentração de força e dinamismo,
e cuja foz é a seqüência; nela, assistimos ao
encadeamento de elementos que obedeceriam aos cânones clássicos
da representação, sustentado por características
que um formalista como E. H. Gombrich se empenharia maníaca
e demiúrgicamente em enumerar: “(...) decorum, proporção,
harmonia formal, respeito à tradição e à
identificação mimética, discrição
estilística e controle preciso das respostas do espectador”.
Causalidade narrativa rigorosa, uso estritamente diretivo do raccord,
ação fluida e continuada são os avatares
desta supremacia da seqüência sobre o plano, da ação
narrativa sobre o gesto – a ação
em surdina, a epifania quintessencial, coagulada no espaço-tempo
de uma irredutível diferença. O tête-à-tête
háptico a que aspirava Eisenstein com o close-up
perde seu terrorismo icônico, seu Hic et Nunc; “converte-se
na implicação seqüencial de planos, análise
convencional de uma realidade contínua” ( Bazin).
O filme torna-se menos o lugar de uma eclosão ou fulminação
de presenças que a rota, irregular e cambiante, de uma
irisação energética, mas centrada e dirigida
por categorias ideais de fins, ligadas a questões de gênero
e de uma apreensão “clara e distinta” dos eventos.
Uma estética da fascinação
originária – que tem no plano a unidade de manifestação
fundamental – cede o passo a uma analítica dos efeitos:
a ação enquanto tal passa a ser aquela que gera
efeitos num certo devir, o devir do filme. Mas a ação
existe para além do espectro da causalidade, da geração
de efeitos. Tudo o que aparece num mundo de forças
como o nosso é princípio (arché) e fim (telos)
de uma ação, em si e para si.
Qualificar uma ação limitada
ao plano ou concentrada sobre si mesma de descrição
– como Semoulé em seu belo livro sobre Bresson
– não me parece acrescentar nada de relevante, pois
cinema não é apenas questão de retórica
(mas também de embates bruxuleantes entre a luz e a treva,
desaparições sofridas e infligidas no foyer
“entre” os cortes, attacca subito!), e sobretudo:
evacuar uma ação de seus efeitos “narrativo-seqüenciais”
não implica extraí-la do mundo (o decisivo do som
off em Bresson, o fora de campo). Este continua presente, mas
não para nós (ou não a título
de espetáculo). O plano, quisto metonímico
incrustado no seio da Grande épica narrativa?
Nietzsche ainda: “Mas afinal – se refletíssemos de forma mais espiritualizada – o que não seria ação? O afeto que se declara, a compreensão de si – não seriam ações? É preciso sempre sermos supliciados à morte para agirmos e sermos agidos pelo mundo?”
A precedência da sequência sobre
o plano – da narrativa sobre a aparição, ou
do Logos sobre a presença – elidiu este universo
em surdina, camerístico e crepuscular, da ação
que se concentra sobre si mesma – e que eclodiria aqui e
ali ao longo do cinema clássico, mas agora como digressão.
A rigor, a digressão fordiana é um tipo
de ação tão legítimo quanto qualquer
outra. Mas segundo os critérios draconianos da
estética clássica, esta não serve como ação,
ou daria trabalho às elocubrações paranóico-teleológicas
de um Monsieur Mitry, por exemplo (que, segundo Bonitzer, também
tinha enormes dificuldades para conceituar o que seria um plano,
sobretudo após o golpe de cena baziniano do plano seqüência,
pós-Orson Welles!). Ora, olhar o espelho – ou morrer,
sem mais – são ações como quaisquer
outras; a questão é que não servem
(ou não exclusivamente) a uma estética narrativa
do espetáculo - se é que não incorremos numa
redundância aqui –, pois o único espectador
sou eu mesmo (ou o espelho, o féretro). Elas não
suscitam nada além de si mesmas. O corpo mercadoria não
vai para a ribalta; permanece na coxia do recalque, mas eu
o contemplo (e em cinema, ponto de vista é uma questão
rigorosa e literal de posição: Wellman
e Dreyer nos deram dois pontos de vista impossíveis do
defunto em uma cova, apenas ao colocarem a câmera dentro
de um caixão ou no fundo de uma sepultura).
Em Corpo Presente, Marcelo
Pedroso nos mostra uma suíte concertante de ações
que perfazem um ritual; ele recupera para a ação
– e para o plano de cinema, onde esta se forja e me fulmina
– esta “parte maldita”, este desperdício
do gesto segregado no seu próprio devir que um dia expiou
a intimidade de um melodrama kammerspiel em Lupu Pick;
ou estes slapsticks na vizinhança entre planos,
que ora cortejam o pitoresco ora devassam o esquizo nos Subúrbios
de Barnet, no Ivan de Dovjenko. Mas esta recuperação
de um certo númen do gesto primevo tem algo de perverso;
de nada primevo ou originário, portanto, mas diferido,
desviante. Estamos diante do quadrante espaço-temporal
onde vestígios se acumulam e rastros se inscrevem,
mas enquanto rastros e vestígios, o real autopsiado;
não muito longe da sanha cognitivo-dedutiva de um Comissário
Lohman , personagem do M e do segundo Mabuse
de Lang: cada plano é índice do que um dia foi
presente, e agora é mero suporte para minha escalada
de potência controladora sobre o ser; o que se mostra é
objeto de fetiche, mas de forma mediada: fetiche pelo meu fetiche
de poder, poder pelo poder.
E a câmera, esta infernal máquina
de raptar presenças, se encarrega de mortificar o rastro,
embalsamá-lo (a metáfora não é casual,
como se depreende). Ao final do classicismo, o caráter
descritivo, narrativo ou finalístico do plano – por
mais que este fosse rocambolescamente mobilizado pela vertiginosa
cadeia dos faux-raccords do cineasta experimental que também
foi Fritz Lang – é substituído por um puro
valor de exposição. Este já não
serve a nada senão à própria (frontal) expiação.
No fim do caminho, a mortificação ou expropriação
da câmera sobre a presença aparece aí,
enquanto aí; a definição borgeana
do barroco se aplica bem ao que intento dizer, mas só
se por barroco substituirmos arte tardia, ou crítica: aquela
que expõe os próprios meios. Haveria tema mais adequado
à apreensão da monstruosa vontade de potência
exercida sobre o real pelo olho psicótico e fetichista
da câmera do que uma cerimônia fúnebre?
Mas Corpo Presente também
se insere nesta história secreta do cinema que vive da
devassa das aparências, ou pelo menos da aparência
entendida como imagem pública, espetacular (especular). Aqui,
como em tantos belos e tardios filmes sobre desilusão e
espetáculo (enfim, sobre Hollywood) – O Teatro
das Matérias, All that Jazz, Femmes
Femmes, Olhos na Boca, Num Ano de 13 Luas
– é como se o fora de quadro se fizesse carne; coxia
e despensa, as matérias-primas do que um dia foi cena tomam
o primeiro plano. As ações de Corpo Presente
não servem à consecução de efeitos,
mas também não visam à idolatria da subjetividade
decadente no lusco-fusco dos kammerspiel de Pabst; elas
vão vasculhando, como pegadas de algum deux absconditus
medieval, a trajetória da presença que se oculta
ou vela – enquanto oculta e velada, enquanto Nihil.
Como no deus timorato de Aquino, é
como se não nos fosse possível abordar frontalmente
a presença que se esvai; como se esta só nos pudesse
ser o contracampo num modo de irrisão ou farsa (o manequim
que substitui a presença do morto no filme), como representação;
a idéia medieval é que Deus deve se retirar após
a criação do mundo, uma vez que, sendo o Nada, se
permanecesse no mundo nada mais seria. O confronto com o divino
é impossível à finitude, a não ser
como ausência (rememoração na anamneses cristã)
ou presença mediada (teatro, boneco, imago).O rito que
se celebra aqui não se destina à entronização
de nenhuma presença, como nos tantos ritos simbólicos
de que somos obrigados, adolescentes mais ou menos mortificados,
a sofrer o horror numa sociedade de consumo. Aqui, o rito vale
enquanto rito, o gesto enquanto gesto (e insígnia de luto);
o ritual se reserva o luxo de celebrar a ausência –
e, portanto, a si mesmo enquanto ritual, carnaval de gestos desconectados
de fins e espaços-tempos restituídos à condição
de santuários de restos mortais (de presença), mesmo
que reificada e laboratorial, como aqui. Este aparece em sua pureza
(e dureza) primeiras, quiçá últimas.
E verbum caro factum est (João 1.14:
E a palavra se fez carne). Mas em Corpo Presente a letra
da Vulgata é corrigida numa errata espiritual que fala
um tanto quanto perversamente de nosso mundo. Aqui, a palavra
faz-se plástico, polietileno, e sobretudo imagem.
O filme fala de uma inacessibilidade ainda mais essencial à
Morte da que sofriam os teólogos de dois mil anos atrás.
Comecei este texto fazendo um panegírico ao plano, certamente
inspirado por analogias onto-teológicas que me interessam
hoje, ou seja: uma espécie de mística baziniana
do plano como reduto de aparições, mística
que não fica muito a dever à libertinagem fascinatório-demiúrgica
de um Mourlet. Mas há no filme – na contracorrente
das poluções mítico-homoeróticas,
comuns a Mourlet e a meus momentos de dândi casual –,
uma visão dura do corpo; ao menos do corpo que cabe a nosso
Zeitgeist (Espírito do tempo), corpo absolutamente
exposto – versão narcisista do velho fantasma
marxista da mercadoria.
Tabernáculo violado, desmistificado
– este manequim que nos cor-responde, figura puramente idólatra
– sem fora de campo, sem passado, sem história –,
superficial, plana. Bonitzer insiste na diferença entre
um plano de cinema e uma imagem, no que concordo absolutamente.
Um plano de cinema é não apenas uma imagem, mas
um monte de outras mediações envolvidas. Mas o que
Pedroso nos mostra é um plano de cinema que nos mostra
uma imagem; imagem cruelmente inserida na diegese, na experiência,
no devir do filme, embora não tenha o menor direito à
diegese, devir, experiência, pois nada é; é
um simulacro.
E justamente por não ter o menor direito
a um plano de cinema – instância numinosa onde
uma presença emerge –, o manequim, “pura imagem”
filmada por um plano de cinema (e por ele diferida),
expõe o ignóbil da condição da presença
no universo contemporâneo da representação.
Um cineasta tardio não pode apenas ser clássico
– manifestar presenças, criar mundo, suscitar
rituais –, sob o risco de virar acadêmico: uma distância
ainda maior nos separa do mundo hoje, da crença no mundo.
Afinal, 100 anos se passaram desde Griffith e seus melodramas
vitorianos maculados de má-consciência e closes à
la Dickens! Um cineasta deve (também) ser crítico,
gerar uma diferença, assinalar um elemento que extrapole,
que desperdice; part maudite, ainda e sempre.
Pedroso sabe disso, e nós também. Como disse acima,
o fim de jogo do classicismo nos libera a pôr em cena (como
na mesa) seus fetiches e marionetes, seus trompe l’oeils.
O que permanecia dentro da diegese do filme em A
Regra do Jogo de Renoir, como piscadela de olho – no
caso, as marionetes do marquês manipulador, metonímia
do jogo de substituições sacrificiais do filme –
agora o estrutura, e nos acena da superfície, e enquanto
superfície; trompe l’oeil literal, no caso.
Mas eis que uma clareira se abre, introduzida
por um plano sobre ciprestes que me parece ecoar um plano mortuário
de Crônica de Anna Madalena Bach (Straub e Huillet),
um plano que saúda o iminente desaparecimento de Bach, a
última e triunfal saída de campo, dentre tantas entradas
e saídas de campo de que nossa vida é pródiga.
Os planos anteriores em Corpo Presente eram planos que
nos mostravam a imagem de um manequim, um ser que não existe;
sem lugar num plano de cinema, portanto. Imagem, simulacro,
artefato de consumo e representação. Mas este homem
que nos interpela e aparece, ao fim desta longa vigília
sobre o horizonte, existe e morre. Num plano de cinema.
Assim, temos a restituição das cartas de nobreza a
uma presença, humana ou não. Habitar um plano é
habitar um horizonte de relações: é olhar e
ser olhado, é ser campo e contracampo (e a viúva que
o contempla e é por ele contemplada uma última vez
poderia recitar São Paulo: contemplar como hoje és
contemplado); é engendrar digressão, relatório
e elegia – e nesta ronda de correspondências e co-pertenças,
exclusões e inclusões, vigílias e rememorações,
recuperar, numa arte tardia, o insight originário
que inspirou o princípio ontológico da ex-istência
(ex-stare) – ser (verbo) para fora, para ontem, para
um Outro.
Maio de 2012
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